Nunca...

Sua biblioteca era uma espécie de refugio. Um lugar de solidão, paz, catarse. A própria configuração espacial era de exclusão, de distancia. Ficava no fundo da casa, sem ligação com esta. Além disso possuía uma entrada externa, para que assim ele pudesse receber seus orientandos sem incomodar sua mulher, Marina.

Palpitava os dedos na escrivaninha, ar de quem espera algo inalcançável, coração em expectativa. Olhava a foto com Marina, não sorria nas fotos com ela, não demonstrava felicidade ao lado da esposa. Infelizmente, ela era a melhor mulher do mundo, dedicada, subserviente... apaixonada. Isso o agredia. Nunca fora bom marido, constantemente estava envolvido em traições com alguma aluna. Brincava com o sentimento das mulheres, sempre fizera isso. Tinha a plena certeza de que não nascera para amar, de que estava ao lado de sua mulher porque ela precisava dele... Marina... Com sua historia de vida sofrida, seu grilhão, sua corrente, a inércia de uma vida compartilhada o ligava fortemente à ela.

Não havia mulher que o fizesse apaixonar. De algumas gostava por motivos estéticos: um cabelo, uma mão, uns braços, um nariz... Outras o encantavam por motivos diversos: meiguice, ar melancólico, vozes lamuriosas, inteligência aguçada. Mas nenhuma, muito menos a esposa constituíam o amor de sua vida.

Com as alunas tinha um prazer de descoberta, era ele um bandeirante, desbravando vidas e corpos femininos. O tocar de corpos inéditos que lhe interessava, o desvelar de barrigas, o descobrir de seios, o desvendar de pernas... Cada uma era como uma região inóspita, desconhecida, que precisava ser percorrida, catalogada e ao fim da jornada... abandonada.

Partira da vida de todas as mulheres que seduzia. De sua mulher continuara pois esta o segurava. Não amara ninguém ao longo da vida... Somente uma... Marília... Ela logo chegaria...

Marina estava em outra cidade, visitando a mãe. Um hiato no sufoco que era viver ao lado dela. Por ironia da sorte, sorte que protege os libertinos, Marília estaria na cidade justamente no hiato de Marina.

O marido de Marília, um engenheiro muito bem sucedido, a antítese dela, teria de fazer um curso na antiga cidade de Marília, de Marina, dele, da juventude em comum onde escolhas levianas os levaram a uma maturidade insípida.

Ele ajeitava os livros, maquiava um falso desleixo. Limpava o cinzeiro (Marília era alérgica). No aparelho de som organizava a lista de músicas: Chico Buarque, é claro. Marília na juventude participara de da Opera do Malandro e naquela cabaré encenado foi ela a mais linda de todas. Não era ele o companheiro de Marília em tal época. Mais uma bela lembrança que possuía dela somente pelo reflexo fraco daquilo que observara a distância.

O toque da campainha fora leve como só ela poderia tocar. Caminhou pelo longo corredor que dava no portão.

Abriu o portão e lá estava ela. Linda como uma succubus . O cabelo preto e liso, curto a altura do pescoço. Um leve anuncio de orelhas teimavam e apontar pelo cabelo, o que ao contrário do normal não a deixava estranha, mas imbuia-a de um ar feérico: uma meio-elfa em seu portão. O rosto era o mesmo de quinze anos atrás, só que delineados pela malícia que só as balzaquianas possuem. O corpo branco como leite era coberto por blusa vermelha simples, jeans casual, um par de tênis selavam o final das pernas.

Marília sorriu e ele fez um espalhafatoso movimento indicando que deveria ela entrar. Ela passou na sua frente encaminhando-se resolutamente em direção à biblioteca. Foi ele atrás, seguindo-a, o caminha silencioso como de uma felino deixava por pequenos instantes aparecer suas belas covinhas, logo acima da cintura. Graças a isso o corredor tornara-se um instante.

Na biblioteca ela derramou-se em uma das poltronas. No reino dele ela sabia ser a imperatriz inquestionável. Ele sorriu, sentou, cruzou as pernas e se abraçou a uma almofada. Desejava um escudo contra aquela beleza demoníaca.

Ela percebeu a música:

- Chico...? – deixando no ar uma insinuação que só ele podia captar.

- Sempre. – respondeu.

- como vão as coisas? Família, trabalho, mulheres, amantes?

- Tudo corre bem, na medida do possível. Marina está em Itagaçaba. Com a idade as amantes diminuem.

- Com você eu duvido que isso aconteça. Ao passar dos anos sua habilidade em conquistar deve aumentar. Tenho dó de suas alunas, deve conquistar todas.

- Meu mal é não ter conquistado a única que desejei de verdade.

Um leve rubor subiu as faces dela. Palavras agora seriam adagas frias e venenosas, maculariam o momento. Ele levantou-se, parou atrás dela e massageou seus ombros. Lembrou-se de um verbete que tinha em mente de cor:

Erótico. 1. Relativo ao amor. 2. Inspirado pelo amor; que tem o caráter do lirismo amoroso. 3. Sensual, lascivo.

Era essa a verdade, enquanto massageava os ombros dela um silêncio denso, que preenchia todas os cantos daquela biblioteca, no atual momento o único lugar existente no universo, transmitia-lhe toda a verdade.

A verdade de que nunca a possuíra pois assim mantinham-se eternos. Ambos casaram-se, ambos tinham famílias que eram opostas àquilo que eram. Então porque não haviam se mesclado na juventude onde todas sabiam serem eles tão iguais, tão completos, tão perfeitos? Dá-se que os seres humanos buscam a imperfeição. O relacionamento perfeito não existe, o não-relacionamento perfeito sim.

Era isso que possuíam, um não-relacionamento. Haviam se beijado uma única vez na vida, fugazmente. Ele aprendera com um checo que uma vez é nunca. Nunca haviam se beijado então, nunca foram amantes, sempre foram amigos. O erotismo estava ai, era uma amizade erótica. Quantas vezes assistiram filmes abraçados como amantes sem nunca terem se amado? Quantas vezes encostaram testa com testa, olharam olhos nos olhos sem ao menos se beijar? Quantas vezes compartilharam segredos, cozinharam juntos, passaram horas nos parques românticos da cidade? Inúmeras vezes. Nunca brigaram, nunca sentiram raiva do egoísmo do outro, nunca tiveram discussões referentes aos gastos familiares, nunca ralharam por ciúmes. Porque um nunca foi do outro, estavam sempre ali, próximos de estourarem a barreira do amor, mas medrosamente nunca o fizeram. O amor contido no coração de cada um os fazia de tempos em tempos se encontrarem, tocarem-se, mas nunca consumaram em si tal fato.

Nesse momento estava ele segurando a cabeça dela de encontro a sua. Testa com testa se tocavam, o hálito dela esbarrava nos lábios dele. Com ternura ela pronunciou esta sentença:

- Eu te amo melhor amigo.

Seus lábios quase se tocaram, ele levantou a cabeça beijou-a na fronte.

- Eu também.

Marília levantou-se e foi embora. Sentado no chão ele encostou a cabeça no sofá e pensou que se uma vez é nunca, nunca é para a eternidade.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 05/10/2010
Código do texto: T2538372
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