Faroeste Caboclo (Homenagem a Renato Russo)

João de Santo Cristo nasceu numa fazendo no interior da Bahia. Teve uma infância difícil, o pai morreu com um tiro de um fuzil do exército num protesto quando ele tinha cinco anos, e a mãe bebia muito para tentar se esquecer do pai.

Cresceu revoltado, só pensava em ser bandido, queria descontar nos outros tudo que acontecera com ele. Na escola era o terror dos professores, roubava lanches, batia nos colegas, não fazia as tarefas, desreipeitava todos. Uma vez ele chamou uma colega para brincar de médico, mas tinha que ser escondido atrás do jardim da escola "para ninguém nos perturbar" justificou. Quando chegaram lá, João ordenou:

-Deite-se no chão, pois não temos macas.

A menina deitou ingenuamente no chão e disse:

-Doutor, eu estou com uma tosse braba, que não quer cessar.

-Tire a roupa para eu poder examiná-la.

A pequena não entendeu a necessidade de ter as vestes tiradas, mas, afinal, o doutor estava mandando, então ela tirou primeiro as calças, e depois a camisa, ficando apenas de calcinha. João começou a apalpá-la, dizendo que estava examinando. Na hora que ele ia retirar a calcinha da colega, o diretor, que passeava pelo jardim nas horas vagas, chegou e viu aquela cena.

Os pais da menina e a mãe de João foram chamados, houve uma confusão e, finalmente, João foi expulso da escola. A mãe dele não ligou muito, na verdade não ligava muito para nada que o filho fazia e, aliás, haviam outras escolas na cidade, ser expulso de uma ou outra não era o fim do mundo.

Ia para a igreja aos domingos, e no fim da missa se esgueirava até a cesta do ofertório e pegava o dinheiro que ali tinha. Um dia foi surpreendido pelo padre, e levou um sermão imenso, mas nem assim parou com os roubos de fim de missa.

Se metia em muitas brigas, e os roubos começaram a aumentar de tamanho, aos quinze ele tentou roubar um rádio de pilha em uma lojinha, e foi mandado para o reformatório. Passou um ano inteiro lá, nutrindo seu ódio pelas pessoas. Os meninos mais velhos batiam nele, e faziam-no de menininha. Saiu de lá mais mau do que entrara, os furtos aumentaram mais ainda, tornou-se mais violento, ingressou numa gangue, e andava com uma navalha no bolso.

Ficou nessa vida até os dezoito anos, quando decidiu, para o alívio da cidade, ir para Salvador. Nessa época era um rapaz belo, moreno, alto, de rosto simpático, olhos verdes, e nariz de deus grego, era forte e estava sempre usando camiseta e bermuda, além das sandálias de dedo. Pegou um ônibus e rumou para a capital, foi conhecer o mar. Chegando lá, foi tomar um cafezinho na rodoviária, e viu um boiadeiro que chamou ele e falou:

-Eu tenho aqui uma passagem para Brasília, não há lugar melhor para ir nesse país, eu só não vou porque tenho que visitar minha filha, que está moribunda, e essa passagem é para hoje.

-Isso é algum tipo de golpe?

-Não. Sou um homem honesto, você tem minha palavra.

-Num sei não, venha comigo, só te pago quando eu estiver entrando no ônibus.

-Ora, não tenho tempo para gastar aqui, tenho que ver minha filha, ela está morrendo.

-Então me dê seu endereço, que, assim que eu chegar em Brasília, te mando o dinheiro.

-Tome, -disse o velho, escrevendo o endereço no papel, e entregando-o, junto com uma passagem de ônibus.

"Velho estúpido", pensou João, ao sair daquela lanchonete, sem ao menos terminar seu café, e ingressou no ônibus para Brasília.

Ficou pasmo ao chegar na capital, com todos os seus enfeites e luzes, pois era época de natal. Passeou pelas ruas da cidade e pensou em começar a trabalhar no ano novo.

Comprou uma casa em Taguatinga, e trabalhava por lá mesmo, como carpinteiro. Fazia mesas, cadeiras, e todo tipo de móveis de madeira. Não ganhava muito dinheiro, apenas o suficiente para sobreviver, mas até que tinha uma vida boa, tinha dinheiro o suficiente para ir à zona nas sextas à noite e conheceu muita gente por lá, até um peruano que era neto bastardo de seu bisavô, nascido da relação com alguma moça da região em suas viagens a trabalho. O nome desse peruano era Pablo, e ele contrabandeava coisas da Bolívia, e disse a João que ia começar com um esquema pesado de tráfico. João recusou a princípio, mas depois, vendo que seu dinheiro estava ficando apertado, decidiu que ia se virar com Pablo.

João e Pablo também começaram a vender maconha que eles plantavam no quintal de casa, e ela foi se tornando famosa, derrubando os outros traficantes da área. Vez por outra algum cliente falava do lado de fora da porta:

-Tem bagulho bom aí?

-Claro, -respondia João ou Pablo- o melhor da cidade.

João enriqueceu e começou a frenquentar os lugares mais descolados de Brasília, ia pra Asa Norte fumar com a gangue, ia pra shows de rock, para se libertar. Sua gangue não era muito grande, eram apenas um arruaceiros que badernavam e vagabundavam pela cidade. Essa gangue praticava pequenos delitos, apenas por hobby, e João, que já tinha uma tendência ao crime, ingressou na onda, mas na primeira vez que foi furtar algo ele foi pego, e preso.

Na prisão ele apanhou, foi estuprado, torturado, os prisioneiros todos batiam nele, por ele não ter ninguém da gangue na prisão. E João agora nutria ódio não apenas pela sociedade e pelos colegas presidiários, mas também pelos membros de sua gangue, que o abandonaram para apodrecer naquela cela.

Virou um perigoso traficante, assaltante e sequestrador quando saiu da prisão, usava identidades falsas, e estava sempre mudando de endereço, para fugir da polícia. Até que conheceu a jovem Maria Lúcia, de apenas 17 anos, por quem se apaixonou. Foi quando resolveu que não mais iria roubar, e seria outra vez um trabalhador honesto, até porque tinha dinheiro de sobra com os anos que passou no submundo.

Ele voltou a ser carpinteiro, e Maria Lúcia foi morar com ele. Os dois viviam uma vidinha simples, mas apaixonada. João dizia para Maria Lúcia que iria amá-la para sempre, e que queria ter um filho com ela, e ela sorria.

João ainda era conhecido no submundo e um dia veio à sua porta um senhor elegante, boa pinta, e rico, que ofereceu a João muitas propostas indecorosas, mas este recusou. O senhor saiu da casa maldizendo João.

A bebida era um problema para João, quando ele começava, não conseguia parar, e isso custou-lhe o emprego, então foi procurar Pablo, atrás de armas e dinheiro. Pablo trazia um lote contrabandeado da Bolívia, e João o revendia em Planaltina. O sucesso de João incomodou Jeremias, que, vendo sua fonte de dinheiro ameaçada pelo contrabando de João, decidiu que acabaria com ele. João ficou sabendo dessa ameaça, e se armou com uma Winchester 22 que Pablo dera a ele. Mas decidiu que esperaria Jeremias fazer algo.

Jeremias era um traficante famoso, tinha 42 anos, dizia ele, era alto e magro, tinha um grosso bigode e estava sempre de terno. Era maconheiro, adorava festas e orgias, chamava meninas jovens e inocentes para essas festas e desvirginava-as, dizia-se crente, mas mal sabia rezar.

Cansado desse vida errante, e com saudades de Maria Lúcia, João resolveu voltar para casa, pois queria se casar com ela. Ao chegar em casa surpreendeu-se, Maria havia se casado com Jeremias, e estava grávida. João entrou em desespero, ameaçou Maria, ameaçou Jeremias, até que teve uma ideia, desafiou Jeremias para um duelo:

-Jeremias, você roubou minha mulher, e eu não te perdoarei por isso, você vai pagar caro. Amanhã, às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, duelaremos, se você não amarelar e fugir, claro.

-Estarei lá, e farei daquele lugar o seu túmulo.

-Você pode escolher suas armas, que eu te matarei de qualquer forma, seu porco, e também matarei Maria Lúcia, aquela falsa, traídora, a quem um dia jurei amor.

João tentou dormir para estar preparado no dia seguinte para o duelo, mas ficou inquieto quando viu na televisão uma notícia dizendo do duelo, do local, e da razão dele. Ele ficou pensativo, "Será que essa era a coisa certa a ter feito? Sim, aquela vadia me traiu, e agora já é tarde para voltar atrás." João passou aquela noite de sexta toda se revirando de um lado a outro do sofá.

Acordou perto de uma da tarde, escovou o dentes, lavou o rosto, se vestiu, pegou alguma coisa para comer, entrou no seu Opala V8 e foi para o duelo. João chegou ao lugar do duelo, havia dezenas de pessoas que foram lá assisti-los, já era perto das duas horas e nada de Jeremias chegar, até que se ouviu um barulho de tiro, uma bala entrou pela nuca de João e atravessou-lhe o pescoço. João caiu no chão e sentiu o sangue jorrando em sua garganta, tudo estava ficando escuro, as pessoas, o sorveteiro, as câmeras que o filmavam e... Maria. Ela também estava ali, e trazia a sua Winchester 22. João a pegou, e disse, com todas as forças:

-Jeremias, ao contrário de você, eu sou homem, e não saio atirando pelas costas dos outros. Olha aqui, seu filho da puta, olha esse sangue na minha cara, e vem sentir teu perdão.

Quando Jeremias voltou-se para João, este estava de pé, mas só teve forças para permanecer assim enquanto descarregava a arma em Jeremias, que caiu morto no chão. Maria Lúcia vendo tudo aquilo começou a chorar, pegou a arma de Jeremias e se matou ao lado de João.

As pessoas que estavam no local disseram que João era um grande homem, pois soube morrer com honra, e as pessoas que assistiam pela televisão não acreditaram no que seus olhos viram.

Assim morreu João de Santo Cristo, sem conseguir o que queria ao vir para Brasília. Ele queria era falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só faz sofrer.