O Patrão e a Diarista
Estava morto desde segunda-feira e ninguém sabia. A diarista que fazia faxina, toda quinta, há cinco anos foi quem o encontrou nu, em cima da cama.
Fora esse detalhe, tudo estava no seu devido lugar: a roupa dobrada sobre a cadeira, os porta-retratos, a coleção de carrinhos, estava tudo lá. Até os 753 discos de vinil que, por exigência dele, ela limpava de dois em dois meses. Poeira, minha filha. É por causa da poeira. Ela é terrível para os discos.
Em cinco anos, ela nunca tinha ouvido nenhum. Ele dizia que só gostava de ouvir música à noite, depois de tomar um copo de Whisky e fumar um charuto. Sou um velho metódico, costumava dizer. Não me olhe assim. Isso não é defeito, só uma característica da minha personalidade, minha filha.
Nunca a chamou pelo nome. Com certeza, esqueceu na primeira semana e nunca mais perguntou. No início ela achou estranho, mas, com o tempo, foi acostumando-se. Nunca conhecera o pai. Como tantos homens fazem, o dela abandonou sua mãe, com uma criança no colo e foi embora. Trabalhar em São Paulo, justificava. Há 20 anos não dava notícias. Dele só conhecia o nome: Emanuel Ferreira Batista. Guardou também uma foto 3x4, daquelas que se tira pra documentos. Por isso, gostava quando o patrão a chamava de filha.
Não sabe por quanto tempo ficou ali, na porta do quarto, parada olhando pra ele. Não percebeu o odor fétido que pairava no ar. Ele estava deitado de bruços sobre a cama. Os olhos ainda abertos, olhavam pra ela parada na porta. Ela não conseguia se mexer. Não sabia o que pensar ou que fazer. Ligar pra quem? Talvez chamasse o porteiro. Será que a vizinha poderia ajudar?
Um pensamento egoísta passou pela sua cabeça. Merda. Não estava preparada pra isso. Também era metódica. Tinha aprendido com ele a gostar da rotina, do dia a dia sem maiores surpresas. Sentia uma pontada de tristeza crescendo em seu peito. Não o ouviria mais a chamando de filha. Às vezes, deixava alguma coisa fora de lugar só para ouvi-lo chamando sua atenção: Já não falei que não quero que mexa nas minhas coisas? Assim, não dá minha filha. Assim, não dá! E ela sorrindo por dentro, tentava não transparecer a pontada de satisfação. Nesses dias, trabalhava até mais feliz. Fingia que estava em casa e que o pai rabugento, cheio de manias, estava reclamando por uma bobagem qualquer.
Eles não tinham muitos amigos. Nem o patrão, nem ela. Mas tinham uma relação cordial e permanente há cinco anos. Praticamente, uma relação estável. Mais longa do que o tempo que passara com os últimos três namorados. Bem, definitivamente não poderia ficar parada ali a vida toda. Resolveu começar a arrumar a casa. Ele não gostaria que a vizinha ou o porteiro o encontrasse morto, em meio àquela bagunça.
Decidiu deixar o quarto por último. Não queria mexer no corpo. Pelo menos, não agora. Começou pela cozinha. Lavou a louça e esvaziou o sexto de roupa suja na máquina de lavar. Pensou no que iria fazer pro almoço, e depois se lembrou que, talvez, hoje não precisasse se preocupar com isso.
Na sala, teve vontade de ouvir música. Pela primeira vez encontrava um disco fora da capa, ainda no aparelho de som. Bastava apertar o play pra ouvir a última música que ele tinha escutado. A garrafa de Whisky e o copo também estavam lá, ao lado do aparelho de som. No braço da poltrona pendia um livro aberto, na página em que ele parou. A cena estava completa: apertou o play, serviu-se de um pouco de Whisky e sentou na poltrona para ler. A música encheu o ambiente e ocupou todos os lugares da casa. Ela imaginou o patrão dançando no meio da sala ao som da música e sorriu. O texto do livro era em uma língua que ela não entendia. Mas continuou fingindo ler, mesmo assim. Virou o copo e serviu-se de mais um pouco. Precisava beber. Pensou em mudar os móveis de lugar. Pela primeira vez poderia fazer isso, sem ouvir reclamações.
Levantou da poltrona e começou a empurrá-la para perto da janela. De repente sentiu a bebida descer pelas pernas e viu tudo rodando e, como se não bastasse a tontura, o cheiro fétido lhe deu náuseas fazendo-a lembrar do corpo estendido no quarto.
Pra quem iria ficar aquilo tudo? Quem seriam os herdeiros? Ele nunca comentara com ela sobre ninguém da familia. Os poucos retratos amarelados e pendurados pela casa eram de um outro tempo, talvez da mesma época daquela música antiga que saía abafada do alto falante.
Olhou pela janela e percebeu a tarde caindo lá fora. Não tinha muito tempo. Como iria explicar que chegara de manhã e ficara todo o dia dentro do apartamento com uma pessoa morta estendida na cama?
Foi cambaleando até a cozinha para beber um copo d´água e poder pensar direito. Resolveu tentar vestir o morto, afinal seu patrão merecia um enterro digno. Despejou álcool em uma toalha e amarrou-a atrás da cabeça, cobrindo o nariz.
Ao entrar no quarto e aproximar-se da cama viu que não conseguiria fazer aquilo sozinha. Ele estava inchado e duro como pedra, deitado sobre uma poça húmida e esverdeada. Era demais pra ela. Já tinha visto muita coisa: gado morto no pasto, homem baleado na porta de casa, muitas coisas estranhas, mas aquilo era demais!
Saiu chorando do quarto e foi direto abrir a janela da sala para gritar. Pela primeira vez no dia, saiu do estado de autômato em que se encontrava e entrou em choque. Gritava e chorava pelo horror da cena com a qual se deparou, aparentemente, pela primeira vez naquele dia.
Enfim, sem medir as conseqüências, acendeu todas as luzes da casa, abriu as janelas e saiu correndo para pedir ajuda.