Angústia
Passaram-se anos sem que ele conseguisse escrever uma linha sequer. Dez anos, pra ser mais exato. Não aconteceu do nada, assim de repente. Na verdade, foi parando aos poucos, escrevendo cada vez menos, tendo cada vez menos inspiração.
Às vezes, em meio à correria do dia, do ritmo estressante do trabalho, lembrava-se de um poema. Bobagem. Atividade inútil, pensava. Mas, outras vezes, quando entrava madrugada adentro acompanhado da solidão, tinha saudades. Educado nas melhores instituições do país, nunca tinha tido problemas para escrever. Ao contrário, a escrita corria rápida através dos seus dedos. Com senso crítico apurado, definitivamente, tinha domínio da escrita.
O problema, certamente, era outro. Tédio, talvez. Apatia. Não sabia dizer e, mesmo assim, não importava mais. Passado tanto tempo, que importância tinha isso? Entretanto, o que, às vezes, parece um fato isolado, não é. Parar de escrever foi só o começo.
O fim da faculdade e a entrada na vida adulta foi um marco pra ele, como pra qualquer pessoa. A rotina de praia e faculdade, tempo livre pra ler e escrever, não existia mais. Nada que fosse um impeditivo, mas serviam de uma bela desculpa. Faltava-lhe tempo, não inspiração, dizia a si mesmo. Se quisesse escrever, realmente, bastava começar. Mas escrever sobre o quê? Os dias corriam um após outro, sem grandes novidades. Saía toda semana, o que também, rapidamente, entrou pra rotina: malhar na academia, beber depois do trabalho, jogar conversa fora, nada que fosse digno de nota. E, quando percebeu, havia passado 10 anos sem escrever nada, verdadeiramente seu. Nada além de e-mails, propostas e relatórios. Pior que, sem se dar conta, foi deixando também de perceber a beleza das coisas, foi perdendo a ingenuidade, foi se afastando das pessoas. Nada era belo como antes, nada despertava seu interesse. De casa para o trabalho, do trabalho para casa. A namorada de sempre, fingia não perceber a falta de vontade de sair, a falta de tempo, as desculpas por conta do estresse no trabalho, o sexo por obrigação. As mulheres são artistas natas, pensava. Fingem enquanto lhes é conveniente. E, para ela, era. Amava-o, dizia sempre. Você é o homem da minha vida. Mas não entendia o porquê de tanta tristeza, de tanta indiferença. Por conta disso, fingiu surpresa quando ele disse que iria embora. Por quê? Ela perguntava. Ele não dizia nada. Dizer o quê? Que não suportava mais a rotina? Que não sentia mais tesão? Que não compartilhava dos mesmos sonhos? Não precisava dizer nada. O silêncio é sempre a melhor resposta.
Naquele dia, voltou andando pra casa. Distraído, com a sensação de liberdade, com o peso que saiu das suas costas, andou por horas. Parou em um bar e pediu uma cerveja. Precisava comemorar. O garçom, de má vontade serviu. Essa é a primeira e a última. Estamos fechando, falou entre os dentes. Ele assentiu com a cabeça. Não precisava de mais nada. Uma só bastava. Só precisava molhar a garganta seca. O pensamento voltou na ex, parada de pé na porta. A gente se vê... Depois volto pra pegar minhas coisas, disse de forma automática. Não iria voltar. Disse aquilo pela força do hábito, por convenção, sabe-se lá por quê. Mas sabia, no fundo, que não iria voltar. Tinha um vazio dentro dele. Ela perguntou se existia outra, se ele ainda a amava. Ele não sentia nada. Esse era o problema. Nada. Em algum lugar e por algum motivo ele tinha se perdido em meio ao dia a dia. Precisava descobrir o que acontecera e precisava fazer isso sozinho. Nesse momento, não tinha forças pra ser a resposta de felicidade de ninguém. Acabou, disse, simplesmente. Levantou, abriu a porta e saiu.
Pode parecer estranho, mas a vida não ficou mais fácil desde então. Ao contrário, não imaginava o quanto estava apegado à rotina de ligações, e-mails e carinhos. O que antes parecia chato, invasivo e monótono, agora fazia falta. Certamente, não a amava. Mas sentia sua falta. Grande coisa. Sentimos falta até de um móvel que mudamos de lugar, pensava ele. E continuava a sua jornada. Às vezes, passava em frente à rua e, sem resistir olhava para o alto. Só pra ver se a luz estava acesa ou não. Era assim que sabia que ela estava em casa. Talvez chorando, talvez com outro. Mas, em casa. Ao alcance das mãos. Fantasiava pedindo pra voltar e imaginava-a rejeitando-o com violência. Dizendo o quanto ele a fez sofrer. O quanto se dedicou àquele relacionamento. Depois balançava a cabeça e se chamava de louco. Pensava em outros finais, mais amenos. Menos dramáticos. Mas não passava disso, pensamentos, apenas vãos pensamentos.
Andava horas na beira da praia, pensando. A tristeza e a apatia tomando cada vez mais espaço na sua vida. Não tinha muitos amigos com quem conversar. Homens não falam sobre sentimentos, falam sobre mulheres, futebol, carros, política, mas sentimentos? Nunca. No máximo, choram a mágoa de uma traição. Não era o seu caso. Talvez estivesse doente. Uma doença da alma, daquelas que sofreram os poetas românticos do século XIX. Não, mesmo que sua doença não tivesse nome, tinha que ter cura. Alô, boa tarde. Posso marcar uma consulta?
Insônia, inapetência, alterações de humor, apatia, dores de cabeça, enjoo, azia, desânimo, tristeza, dor nas costas... Doutor são tantas coisas que nem sei por onde começar. Vamos começar fazendo uma bateria de exames. Não conversou muito. Foi logo preenchendo um formulário de pedido atrás do outro. Disse que não poderia receitar nenhum remédio, antes de ver os resultados, mas deu os conselhos de sempre: tente se alimentar melhor, dormir mais cedo, beber bastante líquido e evitar o stress. Evitar o stress? Alguém sabe como fazer isso? Talvez os monges beneditinos saibam evitar o stress mantendo-se afastados, em seus mosteiros, da vida tal qual a vivemos. Mas, nós não temos como fazer isso. Alguns sabem lidar. Outros, simplesmente, sucumbem em meio ao caos da falta de tempo, de espaço, de silêncio, de privacidade, de dinheiro, de amor.
De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Os dias passavam um após o outro. Os exames ficaram prontos, mas não voltou ao médico. Final de projeto, um milhão de coisas pra fazer. A saúde podia esperar. Tomava um comprimido pra dormir e, eventualmente, um ou dois analgésicos pra dor e continuava na batalha.
Um dia, o celular toca no meio de uma reunião. Número desconhecido. Desculpe. Desliga o celular. Quem será? Tudo agora era motivo para perder o foco. Concentrar-se estava cada vez mais difícil. Sobretudo no trabalho. Terminou a reunião com certa dificuldade. Depois do almoço volta e meia sentia aquela queimação na boca do estômago. Liga o celular. Seis ligações não atendidas. E agora, mais essa....
Atravessa o hall do edifício com o corpo curvado, arrastando a pasta. E, nesse momento, leva um susto, quando percebe o seu reflexo no vidro estilizado que enfeita a entrada. Endireita a postura, Marcelo! Ouve a sua mãe falar. Uma voz que não ouvia há muito tempo, mas algumas frases ditas, não se esquece. Amanhã volto pra academia, pensou. Entra no elevador. Qual o andar? Por um segundo esqueceu para onde iria. Balança a cabeça e aperta o número 5, com força. Quinto andar, seu merda, pensou. Você está chegando à sua casa e não em um prédio comercial qualquer. Se amanhã vou para academia, não sei. Decido quando acordar. Mas que agora vou para cama. Isso é fato.
Procura as chaves de casa na pasta e, nesse momento, toca o celular. Número desconhecido. Número desconhecido. Oi. Silêncio do outro lado. Alô, pode falar! Marcelo? Sim, sou eu. Quem está falando? Já tinha reconhecido a voz, perguntou de propósito para aparentar distanciamento. Sou eu, Marcelo. Sim. O que você quer ? Preciso que você venha buscar suas coisas (Haviam se passado 3 meses desde a ultima vez que ouvira aquela voz). Ok. Quando posso passar pra pegar? Amanhã. Vou deixar na portaria. Obrigada. E, desligou.
Marcelo ainda estava parado com as chaves na mão. Encostou a cabeça na porta, tombado pra frente, como se estivesse escorando o corpo para não cair. “Venha buscar as suas coisas, vou deixar na portaria.” Quanto tempo durou esse diálogo? 43 segundos. Contando com os silêncios. Em 43 segundos tinham dito tudo o que precisavam dizer. Nem um: "Oi, Tudo bem? Está melhor? Tem sentido a minha falta?." Nada vezes nada. Direta e pragmática. Ela tinha mudado. Definitivamente, não era mais a mesma.
Terminou de entrar no apartamento, fechou a porta e sem acender a luz ficou ali, parado, sem saber o que fazer. É isso aí. Vida que segue. Tirou a roupa indo para o banheiro e deixou a água cair quente sobre os seus ombros. Nem lembrava mais que tinha deixado coisas no apartamento dela. E agora, ali parado embaixo no chuveiro só conseguia lembrar-se dos abraços, beijos, palavras, sentimentos, enfim. De que coisas, meu Deus ela está falando? Mesmo tendo chegado ao fim, fica sempre a frustração de não ter dado certo. Aquela ligação não estava no script. Não, hoje. Não, depois de um dia tão cansativo. Amanhã penso nisso. Desligou o chuveiro e, sem se preocupar em secar-se, foi direto pra cama brigar com a insônia e tentar dormir.
A noite foi longa como todas as noites dos últimos cinco anos. Fritou de um lado para o outro, tentando dormir, até olhar o relógio na cabeceira: 3h30 da madrugada. Levantou da cama e foi até a cozinha tomar uma água direto da garrafa, prazer que tinha retomado após a separação. Morava sozinho, não precisava pegar um copo limpo, enchê-lo de água e sujá-lo, para depois ter que lavar a louça. Beber direto da garrafa poupa tempo, além de dar menos trabalho. Simples assim. Ledo engano. Isso sempre foi motivo de discussão. Mesmo morando em casas separadas. O engraçado é que cada pequena crítica ou hábito antigo, por mais simples que fosse, voltava de forma recorrente. Ele havia varrido para debaixo do tapete imaginário todas essas coisas, por tempo demais. Fingido por muitos anos que estava tudo bem. Tudo bem, para quem, Cara Pálida?
Sem sono, pára em frente à janela e olha o mundo lá fora. No Japão já é dia, consola-se. E, certamente, não estou sozinho na minha solidão. Fecha a janela e liga o ar. A noite estava abafada, sem vento, sem brisa, sem nada. Nem o barulho do bar da esquina, que sempre fazia companhia pra ele, estava lá. Segunda-feira, até pé-sujo fecha cedo. O quarto com as janelas fechadas e o barulho do ar-condicionado parece menor. Através do vidro, a luz do poste ilumina os móveis e as paredes sem quadros. O pensamento volta para as coisas que irá buscar amanhã. Teria que levantar cedo e passar lá, antes do trabalho. Droga, amanhã é terça. Tinha esquecido a reunião com a diretoria. Mais essa agora. O corpo reclama de cansaço e os olhos começam a pesar.
Uma semana depois daquela noite, ele passou para pegar suas coisas. Bom dia, Sr. Jorge. O porteiro, todo sorridente, veio lhe abrir o portão. Quanto tempo! O Senhor foi ao Fla x Flu, domingo? Eu não pude, estava de serviço na portaria, vi pela televisão mesmo. Então... Seu Jorge, eu vim pegar minhas coisas. A frase saiu entre os dentes, mais abafada do que gostaria. Suas coisas? Ah! Entendi... As caixas que a sua patroa deixou para eu entregar. Não é mais minha patroa, Sr. Jorge. Ah... Mas ela ainda está sozinha, Seu Marcelo. Não arrumou ninguém, não. Não é da minha conta, Seu Jorge. Mas, estou falando pro Senhor. Andou triste, é verdade. Sem sair de casa. Mas agora voltou pra academia, está malhando. Parece melhor. As caixas, por favor, Seu Jorge, ainda preciso ir trabalhar. Claro, claro. Só um minuto que vou pegar lá dentro.
Ficou ali parado, batendo os dedos nervosamente sobre a mesa. Sem querer, as imagens vinham a sua mente. As vezes que esperava ela descer toda arrumada para alguma festa, ou quando voltavam da praia e tinham que entrar pela entrada de serviço. As compras, os amassos no elevador, os beijos no inicio do namoro. Aonde tudo aquilo tinha ido parar? Quando ele tinha perdido o fio da meada? Nove horas. Não queria cruzar com ela. Não precisavam passar por esse constrangimento. Aqui, está tudo nessas duas caixas. Obrigado. Deixa eu abrir a porta pro Senhor. Tchau. Passar bem, Seu Marcelo. Apareça!
As caixas pesavam como chumbo, mas conseguiu levá-las até o carro. Estavam fechadas. Deixaria para abrir a noite, em casa. Não tinha pressa para reviver o passado. Por ele nem voltava mais para buscar nada. A não ser os anos que tinha deixado pra trás. Fora isso, nada valeria o esforço, mas não queria receber nem mais uma ligação. Nem emails desaforados ou mensagens de texto. Nada. Tinha o futuro pela frente e não queria mais pensar no que passou. Acelerou o carro, entrou a direita no aterro e, sem ver o ônibus que se aproximava, foi pego de cheio. Não deu tempo de frear. O ônibus bateu do lado da porta do motorista e saiu arrastando o carro até consegui parar em cima do gramado, uns 100 metros à frente. As caixas voaram do banco de trás e caíram fotos, livros e objetos pessoais. O barulho da batida na lataria foi ensurdecedor. Seu Jorge saiu na portaria para ver o que tinha acontecido. Mais uma batida de carro. Rotina de sempre. Tomara que não tenha morrido ninguém dessa vez, pensou ele, e voltou sua atenção para a notícia do jornal que estava lendo.
**** FIM ****