A revolta do urubu
A revolta do urubu
Certa vez, o urubu se irritou profundamente com os comentários que ouvia a seu respeito. Considerou que era uma injustiça ser sempre comparado a gente de mal caráter e sem escrúpulos. Ora essa! Afinal, ele tinha sua dignidade, precisava fazer alguma coisa para dar um basta àquela situação.
Cansado de sofrer humilhações e preconceitos, o urubu convocou os seus amigos para uma assembléia de urubus. Reuniram-se aos milhares sobre um monte e cada um se mostrou mais exaltado que o outro por causa das ofensas que vinham sofrendo há tanto tempo. Perceberam que não tinham mais estômago para suportarem as aviltantes comparações que lhe eram feitas.
Em pauta naquela reunião, estava a formação do movimento dos abutres, que tinha como objetivo banir da literatura os comentários maldosos e as analogias, ainda que poéticas, envolvendo urubus de maneira depreciativa. Além disso, eles formaram uma comissão para fiscalizar, investigar e combater qualquer tipo de mau uso do bom nome dos urubus. E, justamente para evitar rimas de mau gosto, eles faziam questão de serem chamados de abutre, ao invés de urubu.
Assim, conforme combinaram, a comissão de abutres sobrevoaria em círculos os locais suspeitos de manchar a sua imagem e, tão logo fosse detectada a falta, todos os outros seriam convocados a ajudar em sua imediata correção, com reparação pública dos danos morais causados à dignidade de sua espécie.
Já tinha até urubu falando em exaltar a espécie a uma classe mais elevada de animais evoluídos, quando, voando em círculos, eles detectaram o exalar de um aroma peculiar de carniça e, um a um, baixaram ao local. Foi uma festa, eles até se esqueceram do movimento em defesa da dignidade dos abutres.
Desde então, os urubus continuam unidos na luta em favor da sua boa imagem, mas sempre que estão sobrevoando em círculos a fim de realizar a fiscalização e o combate da depreciação da espécie, eles acabam fazendo uma pausa para o lanche. Isso não significa que eles tenham se desleixado do dever de zelar de seu bom nome, apenas que precisam, antes de qualquer coisa, zelar do seu bom e, diga-se de passagem, forte estômago.
Assim são os hipócritas, aqueles que vivem a acusar as faltas alheias, porém nunca perdem a oportunidade de praticá-las. Estão sempre reunidos, veladamente a disputar algum destaque. Competem entre si sobre quem deve ser mais exaltado. Aplaudem os que estão acima, mesmo sem ter qualquer mérito. E tentam esmagar os que estão por baixo, pois isso lhes alimenta o ego. Mesmo quando tentam se camuflar, é fácil reconhecê-los: onde houver a possibilidade da carniça, ali estarão eles, invariavelmente.
Kelly Vyanna.