A Saga de Zé de Tita




Uma das coisas mais natural naquela época era qualquer garoto querer ser, quando crescesse, como Zé de Tita. Ele é uma especie de super-herói, uma lenda, daquelas que costumávamos ver na sessão da tarde.

E existiam muitos motivos para isso, afinal o caboclo era respeitado feito a besta fubana. Não levava desaforo para casa de homem nenhum, sem falar que de assuntos do campo, da lida, ninguém sabia mais que ele.

Se tinha um burrego de quartos caído, se precisava amansar burro brabo, castrar ou ferrar boi, cuidar de bicheira, arar e sulcar a terra, se tinha conta para medir então, o cara era uma ás com a braça na mão e ainda cubava a terra de cor como poucos matemáticos mesmo mal assinando o nome.

E se algum desavisado nas redondezas fizesse fuleiragem, alguma arte, e Zé de Tita tomasse conhecimento, lascou-se: o sujeito tinha que se escafeder, pois se Zé de Tita chegasse a tempo de achá-lo, coitado, levava pau da gota, era banhado de melaço e colocado amarrado no morão da porteira do curral para os bois lamberem... depois amarrava o desgramado pelo mocotó, jogava na cangalha e entregava no posto policial da usina Alegria.

Era uma vantagem as atitudes de Zé de Tita, truculenta é verdade, mas roubo, assassinato por aquelas bandas era a coisa mais rara do mundo, graças a ele.

Aos domingos, de quando em vez, havia o renomado clássico Pacheco x Meirim. O cacete era certo todo jogo, principalmente de estivessem jogando Beada, pelo lado do Pacheco, e Til do Peba, pelo Meirim... era uma rivalidade da peste: tinha pau, pedra, xingamento, até faca... era um labafero do cão!

Mas não era sempre assim, porque quando Zé de Tita cismava em apitar esse jogo... Ah, parecia jogo de comadre: sem palavrão, sem cotovelada, sem carrinho... Não tinha graça nenhuma! Tudo dentro dos conformes. Para se ter uma ideia, Zé de Tita proibia Beada e Til do Peba de jogar e os dois ficavam na moita, sem leriado, pareciam uns satinhos...

E os homens mais velhos que conheciam Zé de Tita, apesar da admiração que sentia, beirando o medo, todos queria ser, ou melhor, ter a mulher de Zé de Tita: D. Quitéria.

A formosura da mulher não existia igual: uma mulata de olhos esverdeados, corpo encorpado, cadeiruda, sempre bem vestida adornada por brincos, pulseira e trancelim, dona de um gingado peculiar a raça, nem parecia ter tido oito filhos, tinha um jeito de menina-moça.

Os cabras falavam baixinho, quase murmurando, quando ela passava para buscar água na cacimba: “Visagem, é uma visagem... Essa mulher é uma prinspa!”

Quando acontecia do pessoal ir para a quermesse de N. Sra. Da Piedade no povoado Bananal, Dona Quitéria fazia questão de ir, e seguia pastorando os filhos estrada a fora, sob o olhar atento de Zé de Tita e os rosários de inveja das outras mulheres, encalifadas como tanta beleza depositada numa só figura.

Zé de Tita era um homem estribado com uma dona daquela!

Mas, eis que o pior aconteceu...

Uma pareia de boi que puxava a zorra havia sido atacado por um enxame de abelhas italianas e Zé de Tita fora chamado para tomar pé da situação. Montou em seu cavalo e seguiu para o Piauí, depois da Grota da Negra, quase aos pés da Serra da Mariquita. Um local de difícil acesso.

Ninguém esperava que ele voltasse naquele mesmo dia. Mas Zé de Tita era um homem prático e, quando lá chegou, viu que os animais não sobreviveriam dado ao ataque, ambos já estavam bastante inchados por conta do veneno das ferroadas e ele decidiu sacrificar os animais para estancar o sofrimento: garrou na mão um machado e golpeou ambos na altura da nuca entre uma ponta e outra, fazendo com que caíssem em desmaio; com a destreza que lhe era peculiar, enfiou a faca no pescoço num só golpe acertando a jugular... Pronto, estava resolvido.

Já se fazia tarde da noite, lua nova, quando Zé de Tita apontou na encruzilhada do Livramento, cavalgando em passada mais uns duzentos metros, o suficiente para avistar seu lar. Percebeu uma luz de candeeiro alumiar a escuridão ao derredor do alpendre de sua casa... Desconfiou...

Amarrou o cavalo numa tosseira de cana roxinha e seguiu os últimos metros a pé num silêncio silencioso, sepulcral, medindo cada passo até o terreiro.

Tubarão e Sardinha, um casal de vira-lata encarregado da vigília, reconhecendo seu dono, limitou-se a um rosnar rouco acompanhado de um fungado.

Zé de Tita ouviu um gemido familiar e, ao mesmo tempo, desconhecido para ele. Intrigado, acomodou os olhos na fresta da janela que dava para seu quarto e viu sua mulher em movimentos de cavalgadas, se contorcendo como o bailar dos eucaliptos ao vento, sendo jogada abruptamente de quatro, enquanto era possuída, domada, saciada...

Ouviu-se um estrondo que acordou todo o povoado!

Era Zé de Tita que, de um murro havia derrubado a janela, pulado e sem perder tempo já estava com o pé-de-pano na ponta da faca, prestes a sangrá-lo...

Descomungado, filho de uma égua, vou te mandar pro quinto dos infernos! Dizia Zé de Tita rangendo os dentes com a voz tomada de ódio.
Larga mão de tonteira, Zé, não faça isso pelo meu padim Ciço do Juazeiro! Ele não tem culpa, só faz meus gosto! Suplicava, aos prantos, Quitéria.

A essas alturas tinha amontoado de gente espalhado pelo terreiro, biqueira, quintal, todos no aguardo dos acontecimentos, buscando ver quem era o maluco a desafiar Zé de Tita, o que não tardou, pois Zé arrastou o sujeito para o terreiro em meio aos choros dos meninos, a latomia dos vizinhos, os latidos dos cachorros... Era Tibúrcio: um solteirão que tinha a responsabilidade de tirar leite e pastorar o gado na várzea; um amarelo frouxo que vira e mexe era pego saciando suas libidinagens com as novilhas e até com a cabritas de D. Irene; sempre foi motivo de chacota, sem valor de nada, um bostão...

A cena: Zé de Tita agarrado com Tibúrcio, totalmente imóvel esperando sua desgraça, enquanto que agarrada a cintura de Zé de Tita, D. Quitéria berrava “ajuda” para salvar seu consolo.

Surge Sr. Galdino, proprietário do lugar e padrinho de Zé de Tita, com sua autoridade de coronel sempre inquestionável, dizendo: “Zé, acaba com isso! Abaixa a faca e deixa de leseira. Já tivesse tempo para 'dá cabo' desse desinfeliz e dessa messalina pra mais dez vezes e não fizesse!... Agora quem resolve sou eu.”

Sr. Galdino despachou todo mundo para casa, mandou Zé de Tita se acertar (do que jeito que fosse e lhe coubesse) com Quitéria e, sem zoada, pegou Tibúrcio pelo braço, colocou no jipe e saíram os dois sozinhos...

O que houve com Tibúrcio até essa data é um mistério que ninguém ousa perguntar, o que se sabe é que daquela empreitada só voltou Sr. Galdino.

Zé de Tita e Quitéria acabaram se entendendo e vivem juntos até hoje como se nada aconteceu, num pegadio danado.

Só uma coisa não é mais a mesma: nem menino, nem homem feito, ninguém quer ser mais Zé de Tita, apesar de que sua fama agora é o dobro... passou das fronteiras do município. Sua estória é contada e recontada em varias versões, em anedotas, cordel e até moda de viola...

Junto com o sumiço de Tibúrcio, sumiu também a consideração que se tinha a Zé de Tita. É comum ouvir que “Ôxe, Zé não vale o que o gato enterra!”. Sem falar que, se alguém quer xingar o outro de corno e frouxo (duas das piores coisas a se dizer a um nordestino!), basta chamá-lo de “Zé de Tita” e a confusão tá feita, até morte já deu por essa ousadia.

A tradição do lugar onde nasci entende um acontecimento de infidelidade como morte certa do “urso” e da “gaieira” e, não acontecendo, o corno fica obrigado a ouvir coisas do tipo “Isso é que é um cabra fraco da siribobéia, um seboso desse só vive porque respira!”.

Mas, os letrados e poetas, escrevem como explicação que tudo vale sendo em nome do amor!


 
Flávio Omena
Enviado por Flávio Omena em 26/09/2010
Reeditado em 15/06/2014
Código do texto: T2521214
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