Sombra, o cupido
A rua pacata do vilarejo, aos finais de semana tomava outros ares. Na casa do vovô, as moças começavam os aprontes no sábado à tarde. Os vestidos eram caprichosamente passados. Após o banho (mais demorado nesse dia) os cabelos recebiam tratamento especial. E, não era nada fácil satisfazer o gosto das moçoilas... As louras queriam ser morenas, as morenas queriam ser ruivas e, ah essas tanto fazia, serem louras ou morenas, contando que não tivessem sardas a pintar-lhes a face. Mas, voltando às melenas... os cabelos lisos eram ricamente, engomados com cerveja e enrolados em ‘bobies’ grandes, médios ou pequenos, conforme o comprimento dos mesmos, importa que ficassem lindamente, ondulados. As moças de cabelos encaracolados, porém, fariam de tudo para alisá-los e, começavam a via-crucis, acendendo velas. Não necessariamente, as usariam para rezar, usavam-nas num rito nada comum, queimar os fios rebeldes de seus cabelos. Depois, aqueciam o ferro de brasas sobre o fogão de lenha e estendendo os cabelos em uma toalha sobre a mesa, passavam, passavam, incansavelmente, passavam... Posteriormente, não bastasse isso, havia ainda um 'pré-penteado', as mechas penteadas todas para o mesmo lado, eram presas com grampos ou ramonas, como eram designadas. À noite, antes de dormirem, as mechas ainda seriam soltas e penteadas para o lado contrário, prendendo-as novamente. Miraculosamente, ou não, amanheceriam cabelos extremamente lisos e lindos, finalmente, a contento das moçoilas... Haja trabalho, paciência e dedicação. Ah, mas tudo valia à pena, afinal seria mais um belo fim de semana...
Enquanto todo esse ritual se fazia, as moças trocavam experiências... As da vizinha mais próxima, as mais de longe, enfim, cada uma tinha algo a contribuir para que tudo desse certo no final de semana e, tudo saísse a capricho... Ainda haveria a depilação, a manicuri, as sobrancelhas, ah, eram tantas coisas a fazerem pelas suas vaidades... e, a conversa corria solta entre as jovens. Histórias, frustrações, dores, medos, tristezas, sonhos, expectativas e desejos eram partilhados entre risos, lágrimas e o longo preparo do domingo... E, enquanto ninguém percebia, olhares infantis atentos a tudo perscrutavam caminhos insondáveis, se deliberadamente, fossem instigados a revelar-se.
O vilarejo amanhecia encantado e os domingos amanheciam rosados. O cheiro de alegria pairava no ar e, a música do vinil na eletrola fazia coro ao riso dos jovens... reunidos no velho casarão do vovô, moços, moças, jovens cheios de vida reunidos para ouvir suas canções e trocar... trocar gibis, trocar discos, trocar olhares, trocar emoções... quantas trocas presenciou o olhar da menina, olhares também trocou e o primeiro amor experimentou... ah, mas era tão criança, ele nem notou e, o seu primeiro amor não vingou. Mas, criança esperta, atenta a tudo, sabia quem estava interessado em quem, o que fulana esperava de fulano e o que aquela desejaria daquele... Como nada, ou quase nada aos seus olhos acontecia, pensou uma forma de contribuir e fazer as coisas acontecerem... Criança tem cada uma! Imaginou-se com poderes para mexer na dinâmica social daquele quebra-cabeça então, sutil e criativamente interferiu...
Num dia qualquer, inesperadamente uma moça recebeu uma carta. Dias depois, outra moça recebeu e, assim sucessivamente, se não todas, a maioria foi recebendo cartas com conselhos, sugestões e, revelações sobre seus desejos inconfessos... Inicialmente, cada uma guardou segredo de sua carta. Eram tão interessantes aquelas cartas, incentivando-as a irem em busca de seus sonhos, indicando caminhos, enfim, um estímulo em meio à vida quase sem graça do dia a dia do vilarejo. O tempo passando, os finais de semana acontecendo e as cartas acompanhando o desenrolar dos fatos, continuavam dando dicas, sugerindo, opinando e os romances começaram a acontecer...
De repente, tornou-se impossível esconder umas das outras. Afinal, eram tão íntimas e, as cartas tão reveladoras, eram de alguém que as conhecia e conhecia muito bem. Então, reunidas compararam letras, conteúdo e descartaram-se todas as possibilidades. Entre elas com certeza, não estaria a pessoa responsável por aqueles escritos. Pronto, criara-se o alvoroço entre as moçoilas, quem? Quem estaria bancando o cupido? Quem daqueles jovens seria capaz de adentrar o universo feminino de tal forma, para conhecer tão intimamente cada uma delas? Quem? Nomes e mais nomes sugeriram, descartaram e assim, passaram horas e horas fazendo suposições, enquanto se preparavam para mais um domingo no vilarejo... Alguém as estaria espionando... Pronto! Figuras mitológicas ressurgiram com todo vigor... Criaram-se assombrações! Um vento nas frestas da parede do quarto, era o sopro de alguém a ouvir-lhes as histórias para mais tarde usá-las em suas cartas... Um ruído nas folhas secas do jardim, eram passos do assoprador... Os pais preocupados com o sono intranqüilo das filhas, passaram a montar guarda nos quartos das moças para surpreender o suposto assoprador...
A neurose coletiva já beirava a loucura e, a menina ouvindo a tudo, disfarçava, ora ria junto, ora preocupava junto... até tomar por fim, a decisão de despedir-se solenemente. Então, em sua última carta, desculpou-se pela brincadeira, afirmando: ‘...não duvide querida, o cupido existe e, seu único desejo é ajudá-la a ser feliz. Mas, diante do rumo que as coisas tomam, parto, desejando que encontres o amor e sejas feliz...’ Assinado: ‘Sombra, o cupido’. Com esse pseudônimo, despediu-se também da infância a menina travessa, embalando seus sonhos, na perspicácia da travessura mais feliz de sua meninice.