O casal gay
Embora já fosse noite, o clima estava abafado em Fortaleza. Caminhava. Sentia o suor correndo pelo rosto e da nuca ao cóccix. Avistei, mais adiante, a sorveteria que estava bem movimentada. Aquele era um dos “points” da cidade – principalmente para os que buscavam curtir a dois. Muitos casais, desde adolescentes até adultos, eram os principais freqüentadores do lugar. Alguns vendedores ambulantes aproveitavam para ganhar seus trocados
Parei, já próximo à entrada e conferi o dinheiro que guardava no bolso. Tinha o suficiente. Senti uma mão tocar meu ombro e me virei:
_ Moço!?
Era uma senhora, de idade bem avançada, com uma simplicidade que ia além do que mostrava na maneira de falar, na humildade da roupa que vestia, nas expressões faciais e gestos que acompanhavam sua abordagem. A delicadeza como falava e a paz transmitida pelo modo como me olhava me arrancaram um sorriso que, automaticamente foi correspondido por ela.
_ Olha, como são lindas! Uma pessoa especial merece um presente assim... Leve uma... É bem baratinha!
_ São lindas mesmo, tia! Mas hoje eu estou só! E o dinheiro está espremidinho...
_ Está bem... Fica para outra vez, não é?
_ Sim... com certeza! Assim que eu arranjar um “amor”, eu trarei aqui e comprarei uma de suas lindas rosas...
_ Mas não é só um amor que merece ganhar uma rosa destas. Não precisa ser namorados! Um amigo, ou amiga, um parente... Já pensou? Não há dinheiro que pague a emoção ao receber uma rosa! Pode ser um botão, pode ser um ramalhete... o gesto é o que importa. (...) Bem... Até outro dia!
Aquilo me deixou pensativo. Ela continuou oferecendo as rosas e eu me aproximei da porta da sorveteria. As mesas estavam quase todas ocupadas. Entrei discretamente e, chegando ao freezer, a moça com uniforme colorido e muito simpática, entregou-me o recipiente para que eu colocar as bolas.
Eram tantas opções! Fui colocando uma bola de cada sabor. Quando vi, o pratinho estava no limite. Entreguei-o para que fosse pesado. Quando a moça recebeu, olhou com admiração, abriu um sorriso e comentou, atraindo a atenção dos que estavam próximos a nós:
- Nossa! Que lindo! Colorido... Parece um arco-íris!
Fiquei um pouco envergonhado, e sorri. Só então percebi como tinha ficado bonita aquela mistura de cores que as bolas de sorvete formavam no recipiente. Ela pesou e disse o valor. Bem menos que eu tinha imaginado. Cheguei a me arrepender de não ter comprado a rosa que a senhora havia me oferecido anteriormente.
Dirigi-me a uma mesinha no canto e percebia os olhares que eram dirigidos para o gelado arco-íris – em cores e sabores – que estava diante de mim. Fiquei vermelho de vergonha! Mal conseguia saborear aquela delícia gelada. Ainda bem que aquela situação durou pouco. Logo as atenções tomaram outras direções.
Passados alguns minutos, um grupo entrou. Possivelmente uma família: um casal mais maduro, dois jovens rapazes, uma moça aparentemente mais jovem que eles e uma menininha, muito bonita. Devia ter seis ou sete anos.
Estavam próximos à minha mesa. Conversavam, riam. A senhora ria tanto, de algo que um dos rapazes comentava, que chegava a correr lágrimas dos olhos. O homem de cabelos levemente grisalhos alternava entre o semblante sério e o riso discreto, principalmente diante da agitação da garotinha. Abraçava-a, beijava sua cabeça e ela soltava uma gargalhada. Era muito linda! Tinha uma alegria destacada em seus grandes olhos azuis – destacados pelo castanho escuro de seus cabelos que formavam cachos. Ela corria de uma extremidade da mesa à outra. Tentava pegar a bolsa da irmã – que, vez por outra, mostrava-se irritada:
- Pára Fê! Vai sentar com o papai ali. Olha ta, teu sorvete ta derretendo todo. Vai, vai... Vê se fica quieta!
E a menina, em resposta, apenas sorria... mas continuava ali, tirando a paciência da irmã. Os olhos azuis da menina foram em direção a entrada da sorveteria e, por poucos instantes, ela mostrou-se quieta, observando a chegada de dois lindos rapazes, na mesma faixa etária dos seus irmãos. Ela acompanhava os dois com os olhos até o momento em que eles sentaram à mesa. Então ela voltou a correr de cá para lá... de lá para cá. De vez em quando olhava para os dois, sentados um frente ao outro, sorridentes, falantes, felizes. Estavam usando bermudas jeans, camisas de malha e sandálias de couro – não eram iguais, alguns detalhes faziam a diferença: cores, estampas, etc. Um deles, moreno mais escuro, usava óculos. Levantou-se e foi ao balcão. O outro, moreno também, mas um pouco mais claro ficou observando a movimentação da garotinha e ria bastante. Ela, percebia seu sucesso, e ficava mais agitada ainda. Ela olhava para ele e fazia um aceno, ele correspondia.
O outro retornou à mesa com apenas um recipiente de sorvete. Percebi que, tal como o meu, era muito colorido. O outro, olhando para o pratinho, sorriu e, embora eu não pudesse escutar claramente, observei o movimento de seus lábios:
- Que lindo! Parece um arco-íris!
Cada um deles pegou um colher e passaram a provar os diferentes sabores. Conversavam, riam... o rapaz, certa hora, apontou para a menininha e comentou algo que foi respondido com um largo sorriso do outro. A menininha permanecia lá... agitada.
De modo bem natural, o rapaz que havia trazido o sorvete levou até a boca do outro uma colher de sorvete. Algumas pessoas olhavam, discretamente. O outro correspondeu e, deixando o canto da boca um pouco melada, pegou um lencinho de papel e limpou os lábios do amigo... carinhosamente.
Quando percebi, a menininha estava parada, olhando fixamente para aquela cena. Os dois repetiram o gesto, trocando colherinhas de sorvete. Desta vez, percebi que o senhor grisalho olhava em direção a eles. Sério.
De repente, a menininha correu até a mesa deles e se aproximou daquele com quem havia trocado sorrisos. Ele recebeu a garotinha com um beijo na cabeça. A família inteira olhava na direção deles. Haviam parado de conversar e apenas olhavam. Outras pessoas também observavam. Ela olhou para o rapaz de óculos, sorriu, voltou o olhar para o outro e perguntou, com o braço erguido e o dedo apontando para o primeiro:
- Ele é seu namorado?
Eu, do meu canto, gelei. O silêncio foi geral. Por segundos eu me coloquei no lugar dele e me deu um nó na garganta. Não saberia o que dizer. Naquele momento parecia que todos esperavam sua resposta. Olhei para a mesa onde os três estavam e tive vontade de sair dali. Não queria continuar testemunhando aquela situação. Olhei para o outro rapaz e percebi uma calma, uma tranqüilidade em seu olhar... Aquilo me deixou confuso. Ele olhou a sua volta e notou que eram o centro das atenções. Olhou para o companheiro e deu um leve sorriso... bem discreto mesmo. Mas havia algo mais que aquele sorriso significava. Era como se dissesse “Responda. Faça o que deve ser feito... sem medo”.
O rapaz tocou a face da menininha com as duas mãos, beijou delicadamente sua face e falou olhando bem em seus olhos:
- Como você é linda! É sim... é meu namorado. Você o achou bonito?
Todos estavam paralisados. Olharam agora em direção à mesa da família. Aguardavam o que fariam... A menina olhou para o companheiro do rapaz, trocaram sorrisos e ela respondeu:
- É lindo! Como você.
E completou, olhando, rapidamente, em direção aos seus:
- Meu irmão também tem um namorado. Ele é tão lindo!
- É mesmo?
- É. Mas ele não veio porque ta voando, sabia?
Todos riram.
- Voando?
Da outra mesa, o irmão da garota, ao qual ela fez referência, respondeu sorrindo:
- Ele é piloto. Essa menina... é fogo!
A menina voltou a dar atenção ao seu novo amigo:
- Quando eu ficar mocinha, vou namorar um piloto, sabia? - falava ao mesmo tempo em que movimentava a cabeça em sinal de afirmação, e apertava as mãozinhas - só que eu também vou ser pilota para ficar sempre com ele, voando... voando...
A menininha concluiu o que dizia quase dançando, balançando os braços, imitando um pássaro, e caminhando de volta à mesa da família. Aproximou-se do pai e deu um beijo nele. Os rapazes sorriam vendo aquilo. O senhor grisalho olhou para eles, sorriu e deu uma piscada de olho.
O clima no ambiente voltou à normalidade. E eu percebi que aquela menininha estava a anos luz de todos nós. Respirei fundo. Levantei e com um sorriso na alma sai. Já fora, avistei a senhora que vendia rosas.
_ Eu quero uma! A mais linda que a senhora tiver.
Ela retirou uma que estava no meio do bouquet...
_ Essa parece brilhar mais que as outras!
Eu sorri e apontei para o senhor de cabelos grisalhos que estava feliz entre os seus.
_ E se ele perguntar quem enviou?
_ Diga-lhe que foi a vida!
Segui meu caminho.