Caderno de Receitas

Caderno de Receitas

A letra grande, irregular e bonita, a saltar por todas as folhas do caderno de receitas. Eram letras aos garranchos, como se estivesse sido escrita com muita pressa, afobada. Eram da minha tia, aquela que falava alto, era brava e enérgica. Eu quando menina, tinha medo dela e ao mesmo tempo me fascinava com as suas lindas unhas compridas, sempre pintadas de vermelho. Ficava de boca aberta, olhando despistadamente para aquelas mãos que se mexiam muito enquanto falava, como se estivesse brigando. Nessas horas, eu aproveitava e ficava a observá-las, segura que ela não iria se preocupar comigo, tão envolvida estava em argumentar.

Esta tia tão brava e temida por todos não era assim tão brava para mim. Eu sentia ao mesmo tempo medo e admiração. Admirava as suas lindas unhas vermelhas, admirava as jóias que usava em profusão, que soltavam um som mágico aos meus ouvidos de criança todas as vezes que gesticulava. Admirava quando ela ia trabalhar e passava pelo jardim do prédio onde eu brincava. Nesse momento, eu parava sempre o que estava fazendo e ficava olhando-a, reparando no vestido, nas jóias, na sua independência, numa época em que as mulheres só ficavam em casa, cuidando dos filhos e dos maridos. Foi o meu primeiro contato com a independência da mulher. Isto me fascinava nesta minha tia. Acho que ela foi notando o meu olhar de admiração e sempre tinha alguma palavra ou um olhar para mim. Eu pensava que queria ser também ser como ela, quando crescesse. Usar unhas grandes, passar aqueles perfumes franceses, usar a pulseira de berloques e gesticular bastante para ouvir aquele barulhinho, porém, e o mais impressionante de tudo, seria trabalhar fora...

Ela também fazia comidas deliciosas que só fui degustar bem mais tarde. Cresci, trabalhei muito, tornei-me independente. Adoro jóias, só não pinto as unhas de vermelho, mas cuido muito bem delas e comecei a gostar de cozinhar. Hoje, estou na maturidade da vida e ela lá pelos seus 80 anos. O caderno de receitas, amarelecido pelo tempo, me faz lembrar tantas coisas dessa tia brava, temida e solitária. Entre xícaras de farinha de trigo e alguns punhados de sal, eu repasso a minha infância e o que ela significou para mim.

Sinto saudades de mim, daquela época mágica, encantada aos meus olhos de menina. Muita coisa boa tirei daí. Dessa tia tão temida tirei a receita mais importante: a independência da mulher através do trabalho. Receita dura, tantas vezes penosa, mas que me levou ao ponto certo da vida.

Diana Taboada
Enviado por Diana Taboada em 21/09/2010
Código do texto: T2512274
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