A casa perfeita, a escrita imperfeita
A casa se adentra por entre a floresta junto ao velho moinho, o riacho corre vagamente logo a baixo, os esquilos dançam uma espécie de tango hipnotizante, os melros vêem seus ninhos feitos à base de ervas e lama serem destruídos pela velocidade com que as trepadeiras crescem. Os cogumelos estendem-se ao longo da manta verde dando um tom colorido à natureza. As últimas folhas das árvores se perdem por entre um frio repentino que acaba por anunciar o fim do outono. Logo, logo, a neve chegará para aquecer o Natal dos pobres e esfriar o dos ricos.
Entretanto, a floresta vê-se agora perante novos vizinhos, se aproximam da casa de madeira, de tons castanhos, trazem malas intermináveis, um notebook, vários livros, e duas crianças que de tão parecidas parecem a mesma. De cabelos loiros e olhos verdes sorriem como se acabassem de chegar ao paraíso. Rapidamente se aproximam da água para brincar com uma rã que estende seus quartos para o sol que consegue escapar da copa das árvores. O pai, vestido com um casaco de penas faz-me recordar um esquimó no deserto, sua mulher se esconde a trás de uma rocha como uma libélula envergonhada, uma verdadeira adolescente desvairada pela beleza da natureza. Como ela é bela...
A família se instala neste novo canto que se espera seja de encanto. Ambos escritores, aqui vieram parar para dar azo às suas criações. A casa é pequena: dois quartos, cozinha e sala. Na cozinha uma lareira espera pelos primeiros pedaços de lenha que irão aquecer seu corpo sonolento. A sala é acolhedora, ideal para o casal poder mimar seus filhos ao som de “Kanon” de Joahnn Pachelbell ou de um belo filme de Tim Burton. O quarto do casal dá de caras para uma pequena cachoeira onde águas cristalinas se jogam do terceiro andar – local perfeito para que seus devaneios possam crescer; as crianças se lançam nos beliches de seu quarto, cujo parapeito da janela é freqüentado por um beija flor. Tudo ali é felicidade. Até o Lobo mau que se esconde por entre as rochas argilosas se mantém sereno e sem fome. Ele uiva como se estivesse abençoando esta família. A tranqüilidade reina e a paz é aparentemente estranha. A perfeição é uma realidade até ao dia em que um novo “animal” decide ocupar, ainda que por breves minutos, um espaço adjacente a este paraíso. De seu nome Traste, aparenta ser um editor de livros e com ele vem um fotógrafo do Jornal de Letras. Sua chegada é de imediata notada pelas corujas que intrusivamente se lançam numa fofoca desmedida.
- O editor está ali para negociar com o belo casal - comentam elas.
- E o fotógrafo que faz ele aqui? Pergunta o pequeno javali para a mãe.
- A mãe responde – possivelmente quer fotografar nossos vizinhos.
- Mãe posso ficar na foto?
- Não meu filho, as fotos são para gente famosa..., ah mãe, mas eu sou famoso aqui no bosque... sou mestre do disfarce.
- Tudo bem... Anastácio, pode ser que com sorte eles se lembrem de nós. Mas para já vai lavar essa bunda que temos que almoçar. O guisado está na mesa.
- Estou indo – respondeu o pequeno suíno.
O editor há muito que aguarda com afinco o desenrolar de um novo romance escrito a dois... sim, o casal escreve junto - parágrafo por parágrafo, folha sobre folha... Tudo eles fazem a dois. O ed. veio para apressar esse trabalho, e com ele trás também um enorme livro de cheques, bastava um cheque, mas ok! O casal mal o vê fica enrubescido, não esperavam por esta visita tão cedo, nada havia ainda de concreto no papel, apenas sarrabiscos que não eram mais do que gatafunhados de algo que iria ser escrito. A presença do editor os deixou aparentemente consternados, a sua visita era na hora inoportuna. Um verdadeiro desmancha prazeres. Via-se na cara deles o quanto esta visita os desagradou, aquele homem de figura mesquinha chegou na hora errada; mas que fazer? Dar-lhe esses esboços imperfeitos ou mandá-lo voltar mais tarde? O casal pensou um pouco e decidiram por... dar toda aquela droga ao editor, que não fazia qualquer sentido literário. O editor, mal recebeu aquele amontoado de folhas rasas, pegou numa caneta de bico fino e começou preenchendo meticulosamente um cheque chorudo – ainda pergunta – à ordem de quem? As crianças respondem - de nós – como assim de vós? – perguntou novamente o Editor.
- Sim - rebatem os pais, á ordem de João e Helena (conta conjunta), nossos filhos. Eles são o motivo porque continuamos escrevendo e aturando você – pensaram em voz baixa.
- Certo, certo, não se fala mais nisso... Fotografo vem cá – tira a foto para o jornal.
Cheese... A máquina disparou e na foto ficaram o casal com seus dois filhos, bem que o pequeno javali poderia ter sido incluído na foto. Talvez na próxima. Quem sabe!
O editor virou cara, agradecendo em tom imperativo ao belo casal e entrou no seu belo descapotável arrastando consigo o molengo do fotógrafo, ligou o motor e rompeu caminho a fora com o tesouro! Que tolo, que inergume. Certamente que ninguém sentirá falta dele. Que pessoa tão pessoinha.
O casal vê agora a paz voltar ao seu canto, e com ela iniciam uma caminhada que culminará com nova visita daquela figura. Até quando eles vão agüentar a pressão? O tempo urge, e novo romance tem que sair, o tempo será seu maior inimigo numa floresta repleta de animais selvagens.
PS: Salinger que viveu em reclusão por quase 40 anos sempre afirmou que jamais se deixaria pressionar por quem quer que fosse, se ele se deixasse manipular sua escrita iria claudicar, por isso, que poucas obras dele foram editadas, e apenas uma fora adaptada para o cinema, adaptação essa que lhe desagradou profundamente. Nunca mais ele autorizou algo do gênero. Segundo seus vizinhos, ele passava os dias escrevendo, logo não se sabe ao certo o que aconteceu com tantos textos. Há quem afirme que ele queimou tudo antes de morrer. O que demonstra que ele escrevia para ele, não se importando com o leitor, só dessa forma sua escrita fluía. Escrever é fantástico, mas, por favor - não apressem o que não deve ser apressado. Dêem espaço à imaginação, não tornem a escrita num acervo materialista.