A MULHER DO VELÓRIO. Lia Lúcia de Sá Leitão – 20 /09/2010
Tem dias que a gente se lembra de coisas que pareciam adormecidas na memória, e hoje acordei com algo martelando meus neurônios. Tentei conversar no MSN com uma amiga psicóloga e aquela figura bizarra não saia da memória , tentei tomar café quente, e a mulher me acompanhou, desci, fui até a garagem procurar um livro que havia deixado no porta malas e lá estava aquela imagem olhando em silêncio para mim, olhei bem naqueles olhos fundo e o medo passou, os arrepios sumiram, resolvi esquentar as lembranças, de onde eu conhecia aquela mulher? Quem era ela? Eu sabia que já tinha encontrado aquele tipo magro, alto, cabelos cor cinzas e lisos até os ombros, sem contar o olhar de quem olha o infinito e vê o presente, mãos enrugadas unhas um tanto relaxadas e pés calçados em sandálias comuns, sandálias de quem caminha a pé quilômetros e quilômetros pelas terras vermelhas do Paraná. Verdadeiramente não senti medo da criatura, mas não fiquei confortável em ver todo o tempo aquela figura um tanto sinistra seguindo meus pensamentos. Finalmente estava em um barzinho e aquela mulher torcia um lenço entre as mãos encostada numa parede em frente a mesa em que sentei com uns amigos, questionei cada um se via a mesma visagem e todos responderam não. Entendi: era necessário saber qual o motivo dela me seguir em todos os lugares, mas ao me aproximar a mulher do vestido roxo sumiu e a partir daí entendi que era mais uma das minhas personagens querendo que a humanidade tomasse conhecimento de sua existência etérea.
Tenho algumas visões que se transformam em personagens bizarros ou não, eles existem e eu os vejo reais. Diz a fiel escudeira que é uma realidade paralela. Diz um psicólogo amigo que é excesso de criatividade, mas a verdade é que me atormenta e tenho que escrever, seja o que for, de uma coisa tenho certeza não é texto psicografado.
Certa feita em Cascavel no Paraná, fui a um velório, sou curiosa quanto as culturas das cidades e não podia perder a oportunidade de saber como o povo se comporta nos velórios aqui no Sul.
Achei tudo meio esquisito, enquanto o defunto está ali do outro lado da parede, espichado lá numa sala, sem uma reza, sem uma oração, sem um hino que guie aquela alma pelo vale da morte ao encontro do purgatório, céu ou inferno, se bem que defunto novo nunca vai direto para o inferno, todos elogiam ou por efeito da emoção ou aquele choque que a morte oferece a cada um.
Nesse instante imaginei a voz gelada de bafinho daquela mulher; De mim ninguém escapa, novo ou velho, feio ou bonito, magro o gordo, um dia eu, a morte estarei aqui para cobrar e recolher a vida. É horrível falar sobre essas coisas mas é a pura verdade, e ali, sem a menor reserva de decência todos escondem o pavor da morte pela sua verdade explícita.
Aquela mulher de olhos fundos e vestido roxo de florzinha tom sobre tom estava ali a um canto da sala, olhando imparcial, até pensei que ela fosse a grande senhora que vinha buscar cada um na sua hora. Mas nada! A morte deve ser uma mulher bonita, bem arrumada, sem essa de parecer uma caveira, de roupas pretas, ela deve ser muito sedutora, enigmática, porque nunca vi quem a acompanha nessa viagem não retorna, nem ao menos avisa como que é a recepção do outro lado. Jamais aquela senhora simples de sandálias desgastadas podia ser a morte. Ali, continuava os cochichos, um deles me chegou aos ouvidos o pecado da gula também é um agravante nos velórios em Cascavel. Tipo bem penoso e triste, mas estômago não pode sentir fome e o defunto se alegra se você come bem na sua despedida. Alguém sussurra ao seu ouvido algo assim: vai ali naquela sala e tem lanche, café, refrigerante, coxinhas, risoles, pastéis, água com gás e o endereço de onde será o almoço ou a ceia para dar sustância de acompanhar o defunto para sua morada eterna.
Era complicadíssimo, mal conhecia o defunto, mantinha uma cordialidade com os amigos do distinto, estava ali de agregada momentânea, eu queria rezar nem que fosse um Santo Anjo do Senhor mas todos solícitos áquela situação de mesquinhês da morte sobre a vida, só falavam em rock, chutavam o balde nas faculdades particulares, elogiavam o marxismo mas ninguém votaria nas esquerdas paranaenses, segundo eles mesmo não tinham consistencia ideológica de partido, eu ali louca pra rezar um Pai Nosso e sem poder concentrar pelos absurdos marxistas dos universitários amigos do finado.
Como todos sabem no Nordeste, minha terra, morreu um, a primeira coisa que se faz é arrumar quem reze e quem tira os hinos, quem no máximo leva uma garrafa de café, quem água, água de coco, refrigerante fica por conta do freguês nas barraquinhas próximas ao cemitério, estranhei muito ninguém rezar, fiquei quieta rezei uma Ave Maria na calçada, meio interrompida porque um pedia cigarro, outro pedia isqueiro, outro dizia você nem chegou a conhecer o finado. Imaginem que sufoco da minha Ave Maria, sou dessas católicas que se paro ao meio a oração tenho que recomeçar. Ninguém cantava Segura na Mão de Deus e eu cantarolava baixinho como quem ninava o desinfeliz, o nordestino é mais emotivo em relação aos seus entes finados, e fazer escândalos entre os gritos de e agora meu Deus! Quero morrer também! O povo de Cascavel não faz daqueles escândalos, choros altos, gritos, desmaios, fiquei esperando algo inusitado, nada! Não era possível que nada previsto pelo meu senso comum pudesse acontecer, a única cena diferente foram alguns amigos do finado, saírem de mancinho caminharam até um estacionamento próximo do IML e debaixo do nariz da polícia fumaram um charuto de canabis, vulgo maconha e depois voltaram lerdos e risonhos achando a vida bela e a morte como solução da dor romantica dos suicidas.
Fiquei observando e nada! O clima frio da madrugada, muita comida, apareceu até um chimarrão, na verdade me ofereceram mas não aceitei, a erva mate amarga e aquela bomba passa de boca em boca e ali tinham muitas bocas que eu não conhecia e fiquei meio sem coragem de chupar aquele líquido quente. Por fim trouxe o meu carro mais para perto da porta do velório entrei e fiquei de olhos atentos a tudo, como Cascavel é uma cidade atípica, todos se imaginam europeus os fatos transcorrem calmos, um educadamente imaginado como se fosse velório europeu.
Finalmente meus olhos se deparam com a aquela figura etérea, só eu a via, só eu podia ver um sofrimento contido, algo diferente, comecei a imaginar entre uma assombração, mais uma das minhas criações ou alguma parenta do finado que veio guiá-lo para o além. Ali estática, enroscando um paninho florido entre os dedos, horas se aproximava do ataúde e olhava com olhar de avó para o finado, ora olhava no rosto de quem estava mais próximo na tentativa de reconhecer alguém da família. Não vi a mulher de roxo e comer ou beber o que tinha em fartura na sala ao lado, nem buscando se enturmar com alguém próximo. A única coisa que me fez sair do carro e me aproximar daquela figura foi no momento em que ela puxa a camisa de um homem e questiona algo, tão baixinho que não dei para fazer uma leitura labial, ai a minha curiosidade aguçou, sai e me aproximei.
Entrei na sala das guloseimas peguei dois cafés cheguei próxima a ela e questionei, vejo a Senhora alguns instantes por aqui, aceita um café? Ela sorriu pra mim com uma boca miúda e disse, obrigada pelo café, sou freqüentadora de velórios, agora mesmo vim de um lá do outro lado da cidade, um rapaz que acidentou-se de motocicleta e estava espatifado, fui ver mas a família nem fez nada de luxo como esse defunto daqui, na verdade enterraram o rapaz antes do velório completo porque o padre falou que defunto que perde a cabeça no acidente é capaz de perder o rumo do céu e se embrenhar dentro de algum ser vivente e ficar dando trabalho com espírito rebelde. O Padre, juntou meia dúzia de reza e fechou o caixão e disse enterrem o rapaz, No ônibus, uma mulher que veio comprar uns presentes ali no Paraguaizinho me contou que tinha defunto fresco aqui e era filho de gente rica porque a sala de comidas dava para um banquete e estavam esperando um futuro candidato a prefeito da cidade e dois candidatos a deputado. O defunto nem ia ser enterrado hoje porque estavam esperando até o futuro governador, que ai dentro tem de um tudo café, salgadinhos, docinhos uísque, vodcka, essas bebidinhas de gente fina, e eu não quero nada disso, só estou esperando o seu futuro governador e os dois deputados para pedir uns dois milheiros de tijolos para a minha casa não cair em cima de minha cabeça e dos meus netos e eu não ser a próxima a ficar espichada num meio do salão de velório da Igrejinha do bairro por causa da negligência das promessas políticas da eleição passada que nunca foram cumpridas.
Lá aonde moro a segurança pública continua uma porqueira, a rua fez uma cacimba que não passa mais nem os ônibus da prefeitura, as casas que prometeram pra gente estão sem saneamento básicos e todas de paredes rachadas, a escola das crianças não serve nem pra antro de bandidos, e o pior de tudo que fiquei sabendo que os deputados vão caminhar lá na frente pra tomar café com o povo e querem que eu faça uma cuca alemã e um pão caseiro estou esperando os homens para dar a lista dos ingredientes a quantidade e o preço do meu trabalho.
Olhei para aquela mulher, minha personagem etérea, não sabia se ria ou se chorasse, mas a caravana dos políticos chegou e fizeram um tipo de corredor polonês, os homens engravatados e de paletós chiquérrimos passavam sorrindo apertando a mão de todos, os ajudantes distribuíam santinhos, o defunto spichado lá no meio da sala, os homens da política se abraçavam e abraçavam até desconhecidos,bebiam café e risoles, continuavam sorrindo e apertando as mãos de quem estivesse próximo. A mulher etérea nem conseguiu chegar perto, eu consegui ficar numa nesga da construção que dava para ver tudo o que se passava. Os homens de preto deram adeus continuavam sorrindo, entraram em seus carros de luxo, o defunto espichado, o povo em polvorosa com os santinhos nas mãos e tudo acabou no mais puro frege eleitoral, recomeçaram as falas das ideologias, a mulher sumiu, eu ri e voltei para o carro a espera de dois amigos que discutiam poder.