Day-off
A todos os que tiveram o seu.
O gosto amargo toma conta da boca. Não é de conhaque vomitado, se bem que seria preferível estar de porre. Talvez doesse menos; ou parecesse menos real. Cospe. Duas vezes; o gosto está intacto; tentar-se-ia uma terceira vez, mas a boca está seca. Seca, amarga, podre, assim como são as palavras que dela saem, assim como a vida que inspira tais palavras.
De cabeça orgulhosamente erguida, pensa que chegou onde queria estar. Mas sabe que não é bem assim. Não é nem um pouco assim. Sente-se fétido por dentro. Tem nojo de si. Fala palavras torpes, escarnece, dispara palavrões com voz gutural, pra quem quiser ouvir. Tentando preencher, em vão, o vazio que volta a sentir. Não satisfaz; ou melhor, até satisfaz, mas não é o suficiente. Anda sem direção, com o ódio saltando olhos afora, xingando quem quer que seja, praguejando contra o céu e contra o inferno.
Pára em qualquer lugar escuro, sujo e fétido, pois se reconhece em tal lugar. Encontra as pessoas sem-alma que costuma chamar de amigos, todos tão perdidos quanto ele, e eles lhe oferecem uma cerveja que ele recusa, dizendo que prefere algo que o derrube. Bate no balcão e grita uma dose de absinto, sem gelo, sem limão, sem alma, sem cuspe no copo. Vira de uma talagada, estala os lábios. Ele xinga mais uma vez, e sente o prazer do ódio e do absinto tomando-lhe conta das veias, artérias, pulmões. Respira o ódio, a amargura. O gosto amargo da boca parece sumir, mas ele sabe que ainda está lá; porém, enquanto houver absinto circulando em seu sangue, não haverá o gosto na boca e a amargura será doce como o fel. Ou será mel? A esta altura já não se sabe o que é melhor. Pede uma garrafa de Presidente, dois maços de Lucky Strike, paga com uma nota amassada, recebe o troco e, sem conferir, coloca-o no bolso. Pára mais à frente, pergunta sobre um disco de blues, pega qualquer outro na estante, um livro que cheira a tristezas e amarguras passadas e vai.
Afasta os móveis da sala, enquanto abre o conhaque, ao mesmo tempo em que equilibra um cigarro na boca, e vai cantarolando um blues de voz masculina negra, tão amargurada e bêbada quanto ele estará em pouco tempo. Atira-se às almofadas que dispôs no chão, de qualquer maneira, dá uma tragada funda, sente um pouco de náusea, não fuma há muito tempo, dá um gole comprido no conhaque, sem fazer careta, e então abre o livro numa página qualquer enquanto o negro distorce a guitarra melancolicamente no blues.
“Novamente deitado ao colo da solidão.
Olhando as fotos, cuspindo a vida.
Quero garrafas vazias, quero um corpo sem alma.
Quero a sorte de não acordar amanhã.”
Vai declamando no ritmo do blues, sentindo as lágrimas queimarem por seu rosto.
“Traindo minhas palavras.
Que se foda o que eu prometi.
Agora nada faz sentido.
Um cigarro à mais, um ano à menos...
Que se foda se meu mundo acabou.
Se eu vivia uma ilusão.
Não importa o que eu lhe disse ontem.
Pensarei no que te dizer amanhã.”
Neste momento entra uma voz feminina no blues, rasgando um agudo, alterando para grave, e ele chora, chora, enquanto as lágrimas se misturam ao conhaque e à nicotina, fazendo-o esquecer o gosto amargo na boca, o ódio que o percorria, e tudo é amargura, e tudo é melancolia, e tudo é tristeza sem fim. Quer dormir, desmaiar, apagar, e não acordar amanhã. Mas vai acordar. Ele sabe que sim. O mundo não pára só porque alguém quer parar; o mundo prossegue, quantas pessoas imaginam que ele esteja ali, naquela hora? E ele continua chorando, bebendo, até se afogar em amargura.
No dia seguinte ele desperta, com um gosto amargo na boca, uma dor de cabeça terrível, dores no corpo, especialmente no peito, lado esquerdo. Recolhe os travesseiros, almofadas, o livro, as revistas, vira o disco, põe o lado B pra rodar em 45 rotações e vai chorando o pouco que resta. Vai à janela, vê o dia cinza, as pessoas que sobrevivem; cospe; duas vezes; o gosto não se vai, mas hoje ele tem orgulho de dizer: foi apenas um porre.
N.A. – o poema é uma composição de André Julio Rossetto, disponível em http://www.todososlados.zip.net
William G. Sampaio [3/10/09]