Sobre a Raiva

Eu tive medo a primeira vez que vi.

No espelho, olhos vermelhos, rosto transfigurado. Haviam vincos, expressões, mas além de tudo uma aura que apenas os sensíveis podem detectar. Eu era eu, ali no espelho, mas era como se houvesse outra, idêntica, ali, me encarando de volta.

A Raiva nunca fora tão profunda e tão corrosiva em mim. Eu estava chorando, mas não suportava aquelas lágrimas - tive vergonha delas, por que chorava? Tentei reprimi-las e senti o peito arder mais e mais com aquele fracasso.

Aquele sentimento desceu quente pelo meu rosto, arranhou minha garganta, comprimiu meu peito e revirou meu estomago. Espalhou-se, junto com o sangue, pelo meu corpo, amortecendo cada pedaço dele. Meus dedos, eu não os sentia direito. Parecia que qualquer movimento faria minhas juntas explodir de força. Tive ojeriza ao toque, não suportaria que qualquer ser vivo tocasse em mim.

Minha cabeça, eu era apenas cabeça então. Porque ela não parava, eu tinha mil pensamentos, mil linhas de lógica a seguir. Eu não tinha dúvidas, a raiva não me deixava vacilar. No lugar do vacilo havia apenas possibilidades - cada uma mais vil que a outra, e no centro de cada raciocínio eu encontrava a mim mesma uma vítima, injustiçada que merecia ser vingada.

Hoje penso que naquele momento eu era como uma maníaca drogada. A raiva não passou simplesmente. Ela escoou para além de mim depois que machuquei o número de pessoas suficientes com intensidade sem par. Só abrandou quando me senti saciada.

Vi aquela imagem no espelho outras vezes. Por diversos motivos, alguns deles mais compreensíveis do que outros.

Foi assim que eu nunca mais vi minha melhor amiga da juventude. Pela raiva deixei de dizer a um irmão o quanto eu o amava, irmão esse que morreu longe. Por esse sentimento eu criei uma ferida em meu marido, uma ferida que até hoje de certa maneira nos aparta, irreparável. Foram tantas as dores advindas dessa corrosiva emoção – dores as quais nunca creditei responsabilidade a mim, nem seque uma fração.

E anos se passaram antes que eu entendesse que as dores no peito que me assaltavam, já mais velha, um mal jamais diagnosticado pelos médicos, fossem as sobras aguçadas desse sentimento, como cacos de vidro alojados no meu coração.

Contudo, hoje, mais perto do fim do que do começo da vida, ao fazer um balanço, penso no preço cobrado por cada um daqueles acessos. Quando somos jovens, muitos acreditam que raiva é um traço de personalidade, que agressividade é um sinal de força e caráter. Que brigar é uma saída limpa para um problema.

É na velhice que percebemos como é grossa a sujeira que a raiva nos traz.

E como diriam meus avós:

- "Alimentar a raiva é como tomar veneno e esperar que o outro morra".