GRANDES  AMIGOS . . .

Com a paleta presa pelo polegar ia, com o pincel, tirando pedacinhos de cor e com cuidado, espalhá-la na tela. Pintava e afastava-se um pouco para ver o efeito, regressava, dava um retoque, voltava a afastar-se. Por vezes usava os dedos para obter o efeito desejado, o esbatido.
O cavalete estava virado à luz de uma enorme porta que dava para o jardim.
Usava sempre uma velha bata sobre a roupa para evitar sujá-la. Inevitavelmente sujava o rosto quando, num movimento automático, ajeitava os cabelos que lhe caíam para ele.
A sala estava cheia de quadros de vários tamanhos. Alguns inacabados.
Ao longe ouviu o toque da campainha da porta. Esperou uns segundos com o pincel erguido, em expectativa. Não esperava ninguém.
De novo a campainha. Por onde andaria Filomena, a sua dama de companhia? Abrir a porta e receber quem nela batesse era uma das suas funções que eram poucas, aliás. Também lhe abria o correio separando as contas das cartas. Só as cartas de Júlio Monteiro não estava autorizada a abrir. E era a guardiã do jardim...
E uma terceira vez a campainha tocou e já se preparava para lá ir quando percebeu que a porta fora aberta.
Continuou a pintar tranquilamente. Nesse momento dedicava-se a uma parede de casa de campo que queria com aspecto degradado pelo tempo: manchas de musgo, estuque quebrado e caído em algumas zonas deixando ver a pedra.
Exclamações de alegria de Filomena despertaram-lhe novamente a atenção e voltou a erguer o pincel virando o rosto para o jardim porque depreendeu que seria por ali que ela traria a visita mas, no entanto e contra os seus hábitos, Filomena trouxe a visita pelo interior abrindo a porta do estúdio que dava para o corredor.
Virou-se para a esquerda de pincel erguido e deu de caras com Margarida Faria, velha amiga da Faculdade e há anos a viver no estrangeiro que entrava e já de braços erguidos para o abraçar!
_Guida! Que surpresa! Porque não avisaste que vinhas? Teria ido buscar-te onde quer que estivesses...
_Se te avisasse não era surpresa e não queria perder por nada deste mundo, a cara que fizeste ao ver-me!
_Quando chegaste? Onde estás hospedada? Vieste sozinha?
_Calma, calma! Uma pergunta de cada vez! Cheguei há uma semana e estou no Hotel Fortuna, na Vila. O Francisco também veio. Não quero alarmar-te desnecessariamente mas a verdade é ele está muito doente. Está hospitalizado na Clínica da Solange de Brito, lembras-te dela? Pois ela tem uma clínica muito completa com equipas de diagnóstico muito bem preparadas. Ao longo dos anos temos mantido o contacto e foi ela quem nos aconselhou a vir. Temos corrido vários médicos e ainda não temos a certeza de nada. Apenas que ele está cada vez mais enfraquecido e desanimado. Tem muitas dores de cabeça mas as TAC que fez não revelam nada de especial... Estou muito preocupada com ele embora disfarce quando estou à sua beira. Envia-te abraços porque lhe disse que te vinha visitar. Depois de feitos os exames, disse-me ele, vem cá sem falta. Mas deixemos de falar de nós! Vejo que continuas a pintar! E que lindos quadros aqui tens... Não acabas estes? Tens vendido?
_Oh Guida... Prometes que mo trazes cá assim que terminem os exames? Ou melhor, vou visitá-lo eu à Clínica! Hoje vais lá? É só lavar-me e mudar de roupa e vamos os dois. Um dia acabarei estes. Quando me vem uma ideia para uma pintura, tenho de a começar logo. Posso ou não acabá-la... Já fiz duas exposições e, modéstia à parte, com algum sucesso. Sim, tenho vendido alguma coisa. O suficiente para viver desafogadamente. Vamos, entremos para eu me ir arranjar...
_Não, Miguel. Não vamos ver o Francisco. Não para já. Está a fazer exames e precisa de repouso absoluto. Vamos até ao jardim... Sempre gostei dele. A Filomena é fantástica a orientar os trabalhos a fazer nele!
_Vamos lá. Até eu preciso agora de um pouco de ar... Margarida: estás a esconder-me qualquer coisa... Deixa-me pousar o que tenho nas mãos. Passa, por favor...

Percorrem o jardim de braço dado. Não falam, cada um imerso nos seus pensamentos. E quando resolvem falar, fazem-no ao mesmo tempo o que os faz rir como quando eram jovens e despreocupados...
_Diz-me...
_Diz-me...
_Vá lá... Primeiro as senhoras!
_Diz-me: tens tido notícias do Júlio? Como está ele?
_Sim, tenho recebido notícias dele. Vive na Noruega. Casou. Está bem de saúde e feliz, pelo que me tem dito.
_Casou? Oh Miguel... E como encaras o seu casamento? Quem havia de dizer... O Júlio casado... E quem é a felizarda?
_Felizarda? Diz antes felizardo. Foi a Oslo numa excursão organizada pelo Sindicato dos Pintores, conheceu Ågård numa exposição e já não voltou! Ao fim de um ano estavam casados... Como deves calcular fiquei de rastos... Nunca pensei que os anos que vivemos juntos não significassem nada. Perguntei-lho e ele respondeu-me dizendo que sim, que representam muito mas que se apaixonou pelo Ågård de uma maneira que nunca pensou ser possível! Na última que recebi fala-me do desejo deles de serem pais. Barrigas de aluguer. Um bebé de cada... Fiquei para morrer! Já lá vão 5 anos e todos os dias se me aperta o coração de saudades... Já tive duas ou três ligações entretanto mas nada que me consiga prender ou satisfazer... Vazios de sentimento, mercenários apenas. Vieram ao cheiro dos meus bens...
_Estou sem palavras... Sempre imaginei que o Júlio um dia regressaria. Estava convicta que ele estava apenas em Oslo para aperfeiçoar os métodos de pintura neo-clássica... Foi o que ele me disse da última vez que comunicámos.
_Sim, de início ele falou nisso talvez para me preparar para uma grande ausência. Depois foi mencionando o nome Ågård como quem não quer a coisa. E finalmente contou... Convidou-me para o casamento mas não tive coragem de ir. Foi a Filomena a representar-me na cerimónia. Tenho fotografias que ela me trouxe mas não tive ainda vontade de as ver...
_Miguel, tenho de ser franca... O Francisco está a morrer... Tem um cancro generalizado que teve início na próstata. Está a morrer e esteve em grande sofrimento até que a Solange me disse que a Clínica dela controla a dor em casos terminais. Está completamente dopado com morfina. Tem raros momentos de lucidez mas a maior parte das vezes nem me reconhece. É uma questão de tempo... Foram 23 anos maravilhosos mas estes dois últimos têm sido muito penosos...

Abraçam-se e choram no ombro um do outro...

Beijinhos,


 
Teresa Lacerda
Enviado por Teresa Lacerda em 15/09/2010
Reeditado em 15/04/2016
Código do texto: T2500401
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