Servir e proteger
Reconheci minha finitude ainda muito jovem, numa época em que todas as criaturas devem se julgar eternas e invencíveis.
Não posso dizer que me foi especialmente doloroso, contudo das muitas lembranças infantis que guardo, poucas tem tanta nitidez, e possuem seqüência tão longa.
Do alto de meus seis anos, até então, eu não conseguia me imaginar com mais de 15 anos, e acreditava que meus avós sempre foram velhos.
Ia de "perua" para a escola - aquelas famigeradas kombis lotadas de crianças, um serviço terceirizado prestado a famílias que não tinham tempo para levar seus pequenos ao colégio. Tinha alguns colegas de sala comigo, mas, como algumas crianças, vocês devem saber, eu era a boba mais popular, o brinquedo preferido dos valentões.
Então dificilmente me relacionava com alguém a ponto de realmente gostar dessa pessoa, pois mais hora menos hora, ela tentaria crescer pisando em mim. Não era diferente na perua. E naquele dia eu estava pensando em como convencer a professora de que estava mal, porque nas aulas de educação física a perseguição era pior e o professor não dava à mínima.
Então um estrondo. Abalo. Era como se um mundo rompesse num soluço inesperado, de uma vez, incontrolável. Coisas, pessoas, tudo quebrou. Houve sons, cheiros e cores, mas eu não percebia nenhum deles porque meu horror pessoal era aquele medo visceral. Medo da morte nunca antes tão real.
Respirei fundo e travei. Quando inalei de novo foi apenas porque não suportava mais prender a respiração. Então a golfada de ar trouxe junto cheiro de ferro, fezes, borracha queimada, e outros mil odores.
Eu não queria me mexer a princípios. E quando quis, percebi que não podia. Tinha algo errado com a minha perna. Eu não sabia o que era, porque a adrenalina não permitia. Contudo foi o instinto que me fez ficar imóvel, evitando que a fratura exposta, até então não vista, fosse agravada.
Morta, ao meu lado, uma menina de oito anos. Ela estava bem machucada, mas eu soube, assim que a vi. Que aquilo era grave, sem volta. Pouco mais adiante havia uma polpa sangrenta que fora meu colega de classe. Indescritível, irreconhecível, e por anos fui péssima freqüentadora de açougues, churrascos e até hoje evito contato com carne.
Havia murmúrios lamentosos, poucos. Comigo, apenas três crianças sobreviveram ao acidente.
Passei a valorizar mais minha vida depois de deixar o choque pra trás. Os anos seguintes foram pré-universitários, sempre, pois eu sempre estive ocupada em dar significado a minha existência. Eu pensei em ser médica, mas desisti depois de perceber que só adiaria o inevitável. Quis ser psicóloga para ajudar as pessoas como eu, ou como quaisquer outras, para que não sofressem, pra que pudessem viver melhor.
Imaginei que ser professora seria um bom caminho, contudo minha pressa em obter resultados e minha pouca paciência com perguntas diriam o contrário. Engenheira, construir melhor para o mundo? Dirigir a sociedade? Cozinhar?
Então aos 17, tive com a morte um segundo flerte. Em um desses assaltos, muito comuns as capitais de terceiro mundo, enfeitado de armas de fogo e má atitude, com protagonistas de ambos os lados jovens demais.
Eu gritei. Eu juro. Mas as pessoas passavam por mim como se não me enxergassem. E pensar que no primário eu rezava todos os dias pra que isso acontecesse.
Quando alguém parou, eu quase desmaiei de alívio. Porque o bandido desistiu do meu dinheiro, que dizer, só do meu dinheiro, e queria mais. Queria a minha dignidade e isso eu não poderia dar.
Acolhida entre paredes mal conservadas da delegacia, observando o transitar de todo o tipo de gente, eu decidi.
Decidi que motoristas não poderiam beber para bater em peruas escolares. Que velhos tinham direito a caminhas tranqüilas, que jovens poderiam passear sem medo. Que famílias tinham direito a dormir sem receios, que pais precisariam confiar apenas em seus filhos para que nada saísse errado quando estes pisassem fora de casa. Somos seres finitos, merecemos desfrutar nosso tempo. Em segurança.
Para dar significado as linhas da minha vida, escolhi servir e proteger. Eu sou um braço entre muitos. Pode minha vida acabar a serviço, mas não será esse um bom fim? Eu sou "apenas" um par de braços, mas acordo todos os dias pensando que minhas ações melhoram o mundo.
Melhoram o mundo a cada tarefa, a cada passo, de missão em missão, uma ação de cada vez.