MINICONTO: CÂNTICOS DA NOITE ESCURA
Era um sapo.
Horrível, como só alguns sapos conseguem ser. Às vezes, seus olhos esbugalhados piscavam, enquanto brandia sua língua mortífera e veloz.
Quando sentia-se apertado por garras ou mandíbbulas ameaçadoras, sua pele secretava veneno pelos poros.
A mosca, inadvertidamente, não o percebeu quase imerso nas águas lodosas em que gostava de ficar por horas e horas.
Não o percebeu, nem aos seus olhos, nem à sua língua.
E revolteou faminta, admirando o próprio reflexo na supefície escura, perolada por brilhos estelares aqui e ali, tentando encontrar algo com que matar a fome que a castigava sempre, desde que se lembrava.
Ele abriu a bocarra enorme, as patinhas esticadas de expectativa e... desistiu.
E libertou a mosquinha, sem que ela nem sequer notasse que estivera presa, a um passo da morte.
É que ele já devorara tantas moscas iguais àquela, que seu sabor não lhe traria nenhuma nova paz, nem nenhuma quietude, nem mesmo uma surpresa.
No dia seguinte, aí, sim, ela seria apetitosa. E coaxou, rouco, entre os vaga-lumes.
Seu coaxar ressoou nas sombras da noite e, à mosca, soou como um canto lúgubre, solitário e pungente.
A tola apaixonou-se pelas notas graves, chorosas e contínuas que subiam aos céus, fazendo coro com o cri-cri dos grilhos e o farfalhar lamentoso de suas asas translúcidas diminutas.
Voltaria amanhã, decidiu, e isto significava planos de um futuro remotíssimo dentro de sua vida curtíssima.
Futuro que, ela sabia, seria ali mesmo naquele charco encerrado, dentro do canto pelo qual sua árdua luta pela sobrevivência parecera, por alguns segundos, fazer sentido.
É que ela, lá no fundo, queria ter nascido sapo.
E, ao ser engolida e digerida por ele, enfim, realizaria seu desejo, mesmo que ele nem desconfiasse disso.