- Então conta lá a tua história.
- Nem sei por onde começar.
- Não precisas de começar pelo princípio. Isso é missão quase impossível. Falo por mim. Mas podes parar de escarafunchar as pontas dos dedos com as unhas? Já viste as feridas que tens aí?
- Tu estás a fumar. Já vistes as feridas que estás a fazer nos pulmões? Quando te mostrarem os Rx com as manchas dos tumores logo falamos.
- É pá, tu és lixada. Pelo menos não faço impressão aos outros.
- O cheiro dessa merda incomoda-me bastante por acaso, mas não me atreveria a queixar-me.
-Deixa-te de tretas. Desembucha.
- Lembro-me de um dia o fulano ter vindo com uma conversa que durou umas duas horas, sem exagero, aquilo chegava a dar dor de cabeça de tanto ouvir matraquear nos ouvidos, porra. Que eu tinha de convencer a gaja e tal...
- Qual gaja?
- A ex dele. Queria que eu conseguisse que ela voltasse a falar com ele.
- Bem, é preciso ter imaginação. Como se isso fosse possível.
- O mais giro é que foi. Tudo o que ele engendrava, o sacana conseguia. Manipulação pura. Genial até. Deviam contrata-lo para a CIA ou para o KGB.
- Para o SIS queres tu dizer.
- Pois, uma merda dessas. E nesse dia eu já estava tão farta de o ouvir que lhe disse que sim senhor fazia qualquer cena. Mandou-me ligar-lhe a combinar um jantar. E a gaja aceitou na boa.
- Que estranho. Tu foste nessa conversa?
- Eu por um lado não queria ir mas por outro pensei, é um jantar em que não tenho de o aturar, umas horitas de descanso, que se lixe, não tenho nada a perder. E fui. Vesti-me e desci pelo elevador. Quando chego cá a baixo ele vinha a subir pois entretanto tinha ido à rua com o cão. Viu-me e ficou danado porque eu de repente tinha-me arranjado com tanta pressa e tal e não tinha esperado que ele subisse. Como se fosse uma coisa do outro mundo. Eu que já estava pelos cabelos naquele dia, virei-lhe as costas e segui para a pizaria. Queria mesmo vê-lo pelas costas.
- Pudera! Grande doido, o filho da mãe.
- Foi um jantar fixe. Ela entendia-me perfeitamente pois tinha passado durante dez anos o que eu estava a passar fazia dois. Foi o tempo todo a cortar na casaca. Acabamos por fazer ali uma espécie de amizade.
- Que paranóia!
- Vendo agora à distância parece-me de doidos mas eu estava mesmo vivendo numa insanidade total. A certa altura já não sabemos o que faz sentido e o que não faz.
- Lá isso é uma grande verdade. Eu que o diga. Mas continua lá.
- Conta tu agora.
- Não. Depois é a minha vez. Agora é tua.
- Quando cheguei a casa ele estava com um ar esgazeado. Fiquei à toa. Então tinha feito o que ele quisera e agora tinha de levar outra vez com ele? Barafustou horas. Parece que eu tinha me aprontado demasiado rápido. O discurso era loucura total. A discussão prolongou-se até nos deitarmos na cama. Eu já tinha desistido de responder. O meu silêncio enfureceu-o ainda mais. Estava deitada de barriga para baixo e só me lembro de sentir as pancadas nas costas. Nem sabia se eram murros ou pontapés. Levantei-me aos gritos. Devo ter acordado o prédio todo. Foi um terror. A primeira vez é o maior choque.
- Não sabias que ele batia em gajas?
- O pior é que já tinha ouvido as histórias da outra. Nesse mesmo dia.
- Não acreditaste nela.
- Não foi isso. Não duvidei dela. Mas não me vi a mim como vitima. Ela era frágil. Eu não me considerava tão desprotegida. Acho que é a tal coisa de pensarmos que só acontece aos outros.
- Fizeste queixa?
- Não.
- Porquê?
- Não sei. Ele pediu desculpa. Depois quando viu que eu queria enterrar o assunto disse que não tinha sido nada. Nada de especial.
- Acho que preferi fingir que estava tudo bem.
- Até que voltaste a apanhar.
- Sim. A segunda vez foi mais grave. Mas teve o condão de me abrir os olhos.
- Fizeste queixa?
- A quem, à Polícia? Não. Nem a minha mãe me acreditava, quanto mais estranhos. Não tinha marcas. Não tive marcas visíveis. Não fiquei a deitar sangue do nariz como a outra. Decidi que tinha de ser eu a resolver o assunto.
- Pensaste logo ali o que irias fazer?
- Naquele instante em que estava no chão pensei que me tinha de transformar em soldado. O meu irmão tinha ido à guerra no Iraque. Acho que naquele momento eu vi a situação como uma outra guerra. A minha guerra. E decidi que ia à luta. Não soube logo o que fazer. Mas a minha determinação começou no chão, a chorar, sem saber onde é que ele me tinha atingido como um raio para me ter derrubado tão repentinamente.
- Ainda bem que resolveste lutar.
- Também acho. Matar para não morrer. Eu não estava disposta a ser mais uma vítima nesta guerra dos sexos.
_ Também não tenho vocação para mártir...
- Então conta-me lá a tua história.
- Quando acabares a tua.
- Sabes que a memória prega partidas. Não consigo lembrar-me de tudo de trás para a frente. As recordações vêm aos solavancos. Sem sentido no tempo.
- É normal. Há coisas que não se controla. A memória tem vida própria. Recalcamos umas coisas e nem sequer sabemos porquê.
- Lembro-me de passar dias inteiros a imaginar a morte dele. Depois havia outros que me arrependia, me achava um monstro e em silêncio tentava reconciliar-me. Cheguei e ter dias bons na sua companhia. Mas ele estragava sempre tudo.
- Como?
- Era sempre a outra. Não parava de falar nela. Estava completamente obcecado. E manobrava para que nos encontrássemos mais vezes. E lá levava a água ao seu moinho. Às tantas éramos melhores amigas. Pelo menos era o que eu pensava.
- Isso é deveras bizarro.
- Nem imaginas o quanto. Foi uma escalada. E não sei bem como, quando dei por mim estava na cama no meio dos dois.
-E ele não andava nas nuvens?
- Muito pelo contrário. Tinha uns ciúmes de morte. Das duas. Logo a paranóia duplicou. Passei a ser um saco de pancada pois a ela não podia tocar com medo de afugentar a caça. Um dia quando me atirou da cama abaixo com um sopapo disse de mim para mim: de hoje não passa! E deixei-o adormecer. Já tinha programado a cena dezenas de vezes. O machado era dele. Nem foi tão difícil quanto imaginava. A primeira tentativa foi eficaz. Acho que ele morreu logo. Mas pelo sim pelo não continuei a dar-lhe. Não sofreu. Por momentos fiquei desapontada. Mas agora penso que foi melhor assim. O que era importante, consegui-o: ver-me livre dele. Não ofereci resistência. Chamei a ambulância e esperei que me prendessem. Estou mais livre agora. Daqui a uns anitos estou lá fora. Em paz.
- Tiveste sangue frio. Ele não devia estar à espera desse desfecho. Subestimou-te. Mas sabes que és uma minoria. Na tua guerra poucas são as que saem vivas. Venceste uma batalha numa guerra que não terá como vencedor o teu lado.
- Na minha guerra? Ou na nossa guerra?
- As mulheres fazem a sua escolha. Tu escolheste vencer. A maioria escolhe morrer.
- E tu? Escolheste vencer também?
- Mais do que isso, amiga. Eu escolhi o lado vencedor da guerra. Eu pertenço ao outro lado. Ao lado dos mais fortes.
-Como assim?
- Eu sempre manipulei o meu marido. Era ele que amochava perante mim. Era meu escravo. Totalmente devoto. Até ao dia em que resolveu trair-me. Quis deixar-me. Pensava que eu não desconfiava. Fez tudo pela calada e eu à coca a topar tudo. Um dia chamei-o a um descampado e dei-lhe dois tiros. Fingi que foi em legítima defesa. Ninguém desconfiou do contrário. Nunca lhe tinha tocado com um dedo. Ele nunca tinha feito qualquer confidência. Abençoado.
- Tu...
- Sim, sou uma vencedora. Saio daqui a dois anos. Com direito a tudo o que era dele. E não fico nada mal.
- Não tens remorsos?
- Tu tens?
- Não é a mesma coisa.
-Pois não. Tu continuas a ser o elo mais fraco. Mas ainda assim podemos brindar da mesma maneira aos nossos falecidos.
- Olha, lamento informar-te que não vais poder festejar por muito mais tempo.
Tenho uma escuta e toda esta conversa está a ser gravada.
- Tretas. Isso não vale de nada nos nossos tribunais. Andas a ver muitos filmes americanos.
-Quem te disse a ti, ó espertinha, que isto é para a bófia?
Antes de teres afastado o teu maridinho da família devias ter indagado de quem era ele irmão. Já ouviste falar do Moca-Trinta? Pois bem tens a máfia da noite da cidade em cima de ti, amiga. E adivinha até onde chegam os seus tentáculos? Aqui mesmo. Ao estabelecimento prisional feminino. Eles só quiserem ter uma prova, que ainda há bandidos com honra. Saberás por acaso o que isso seja? Mas tem calma. A tua sentença de morte não é para já. Vais poder viver até à véspera da tua libertação. Num verdadeiro inferno, cabra.
AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 11/09/2010
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