Entre o sagrado e o profano
Volto a minha meninice para me redescobrir e me reinventar.Não sei se o que me acontece é comum a muitas pessoas, mas para mim, voltar a minha infância é terapêutico e catártico também.Talvez tenha descoberto uma nova modalidade de terapia, pois sempre que volto no túnel do tempo me reencontro um pouco mais e fico de bem com o meu presente.
Cresci numa cidadezinha bem peculiar.Nela vivi apenas a minha primeira infância, depois vim para BH e aqui estou até hoje na minha caipirice filogenética.
Na minha cidadezinha, a vida era no mínimo original.A nossa casa ficava numa das ruas principais.O interessante é que ela estava entranhada entre “a cruz e a caldeirinha”.Isso mesmo.Ficava perto da praça principal, a poucos metros da igreja matriz da cidade.Ao mesmo tempo, em sentido contrário, às margens de um rio que marcou a vida de todos os moradores das adjacências, ficava a zona de meretrício da cidade.E ninguém vive num lugar com essas características impunemente.Só essa geografia já justifica va as ações protetoras de nossa mãe.A rua, depois das 18 horas, era proibida para nós.Mas como ela era receptiva, permitia que a nossa turma freqüentasse a casa à noitinha, o que já contei num conto anterior.
Então, sempre ao cair da tarde, os vizinhos adultos iam chegando, procurando pela mamãe para um dedinho de prosa.Depois chegava a meninada para o encontro juvenil dentro de casa.Como eu era meio arisca e me sentia não muito querida na ala mais jovem, lá ia eu para o aglomerado da janela bem na calçada.E os causos corriam soltos.
Lembro-me que, com freqüência, alguém tinha algo mais cabeludo para contar.Aí a voz do narrador da novidade adquiria tons dramáticos e sussurrantes.Nesse momento, mamãe já pressentia o peso da narrativa e me mandava para dentro.Eu fazia de conta que ia e ficava a uma distância conveniente, acurando os ouvidos para me inteirar da história.E não foram raras as vezes que fiquei atônita, com os cabelos ainda mais arrepiados do que já eram.
Geralmente as histórias que eu não podia ouvir tinham cunho sexual.Era um marido de uma que tinha fugido com um mulher da zona, ou uma rapariga (este era o termo usado) tinha se apaixonado pelo marido de alguém e passou a incomodar a esposa traída.
Mas uma história em especial marcou a minha infância de forma definitiva.Um bárbaro crime passional ocorreu na minha rua.O fato foi noticiado em todos os jornais do estado e fora dele.Lembro das vozes sussurradas quando abordavam o assunto.
Todos os dias, ao cair da tarde, a calçada em frente a minha casa ficava concorrida.Engraçado, que a minha mãe era séria demais, mas creio que a vizinhança a achava uma boa ouvinte, pois pontualmente às 18h, o mulherio chegava, chamando pelo seu nome.Às vezes apareciam alguns homens também .Era o momento do descanso.Minha mãe largava pelo menos por uma hora a lida diária e ia se inteirar de outros assuntos de nossa pequena e interiorana sociedade.Pena que nem sempre os assuntos eram alvissareiros e despertavam risadas.
Então, voltando ao caso referido, o do crime .Ao tomar conhecimento de que a vítima morava do outro lado da rua, era uma vizinha, bem conhecida nossa e que o assassino também era pai de família e conhecido de todos, fiquei ainda mais apavorada.Sem contar que os encontros entre os dois se davam numa casa pouco abaixo da nossa, tida como mal-assombrada, que havia pertencido a um tal de marquês de não sei das quantas.Essa casa já tinha rendido muitos causos que me tirararam o sono.O trágico ocorrido rendeu vários encontros em nossa calçada.E eu estava sempre por lá, tentando apreender um fato novo, um esclarecimento maior.
O que me ficou na memória ,de maneira indelével ,desse episódio, é o que o amor ( ou às vezes o seu espectro) pode despertar nas pessoas.O quanto de obscuro e indefinível existe na mente humana.Até então, para mim,ninguém matava por amor.A paixão só conduzia a verdes pastos , a remansos encantadores.Foi a partir daí, talvez, que passei a acreditar que o amor faz sofrer, que as coisas do coração não têm apenas cores claras e alegres.
As pessoas que me circundavam, que coabitavam o meu pequeno mundo,estavam todas elas sujeitas à tempestade e à bonança do amor.Se na parte da rua de baixo existia o meretrício com as mulheres da vida, elas também, mesmo que solitárias ,seguiam rua acima em direção à matriz para rezar e pedir proteção, como todas as demais pessoas,com outro tipo de vida,com outras inquietações.
Hoje,ao voltar no tempo,consigo entender que é daí que me vem uma percepção maior das fraquezas humanas e o quanto o sagrado e o profano integram a nossa alma.E admito que, enquanto mulher, acendo velas, rezo muito e quero amar sempre com muita intensidade.