RELÓGIO DE PAREDE

Manhã de domingo com o tempo nublado e o vento quase parado, na avenida central segue o fluxo de carros, cada qual buscando destinos diferentes, mas, utilizando o mesmo caminho o mesmo percurso. Os pára-brisas acenam calmamente em um ritmo monótono devido ao chuvisco que caí nesse dia comum e cinzento de inverno.

Encontro-me caminhando em direção contrária dos carros na avenida, estou na calçada dirigindo-me a casa de Dona Ruth, minha mãe, em uma das visitas esporádicas que a faço quando sou convidado. E no trajeto deparo-me com rostos alegres, não sei por que, tristes, não sei por que, pessoas cobrindo a cabeça com jornais para a garoa não os tocar nesse ponto do corpo, outros em pé, sentados, gritando, calados, chamando, não sei por que, não sei por quem, pessoas mendigando pão, dinheiro, comida, atenção... Não sei por que.

Chego à terceira rua do bairro, avisto a casa assombrada de minha mãe. Conhecida assim por ser uma das poucas habitações da cidade que são do início do século e que ainda se mantém de pé, e pertence à família já por duas gerações, eu nunca me interessei pela velha casa, mas dona Ruth guarda um carinho especial pelo casarão. Tirando algumas reformas que foram feitas, ainda se conserva o aspecto original e barroco, e como possui arvores frondosas na entrada aumentam ainda mais sua feição tenebrosa.

Entro na casa sem bater na porta, e nos compartimentos de baixo há só um silêncio habitual, os móveis como sempre bem arrumados, no chão, o carpete com a imagem de Xiva, deus hindu que destrói para construir algo novo. Hinduísmo é um segmento religioso muito apreciado pela minha tia Noemi, que mora com a minha mãe, ela é professora do ensino médio já por muitos anos, busca no esoterismo a fuga dos problemas urbanos e do caos social que a cada dia aumenta mais. A grande estante na parede guardando os muitos livros, a maioria são de minha tia, na outra parede uma fotografia ampliada e emoldurada da década de setenta das, ainda adolescentes irmãs, Ruth e Noemi. A primeira casou-se jovem com um policial militar, não foi feliz, engravidou de mim, o Homem abandonou a jovem gestante e depois que nasci tudo caiu como uma bomba em cima da mãe adolescente, culminando com um trauma pós-parto e com minha tia revelando também que não poderia cuidar de uma criança. Vendo que não conseguiria suportar toda essa situação sozinha, tive que ser adotado por amigos distantes da família. Depois de muita lauda, com quase tudo superado..., aliás, o que foi vivido foi vivido e o que não foi que se concretize nas outras vidas que virão, ou não, tanto faz, pouco importa.

Ouço um barulho peculiar vindo da cozinha, alguém manuseando o espremedor de laranja, largo a mochila no sofá e sigo lentamente na direção de lá, como de costume, hesitando em ter tal encontro. Indago-me se não poderia estar fazendo outra atividade mais proveitosa, além do mais, eu nem fui criado com ela, por que aceitei o convite? O que isso significa?

Paro na entrada da cozinha, é a minha mãe, com um vestido simples, cabelos presos, usando sandálias, olhar distante sobre o aparelho, espremendo a laranja como se o som do espremedor sugando o suco da fruta, também espremesse sua memória trazendo-lhe o passado de volta.

- Oi mãe.

Digo com um tom baixo olhando para o lado.

O som da maquina cessa, ela se aproxima de mim com uma expressão indiferente, enxuga as mãos na toalha ao lado, me dar um abraço e fala mecanicamente:

- Que bom que veio.

E logo retrocede ao ofício em que estava ocupada, à preparação do almoço para o dia.

Um instante de mudez acontece nesse embaraçado dialogo entre mãe e filho, promovida pela a indiferença mútua que se evidencia em nossos aspectos. Preciso intervir sobre esse transtorno rapidamente, antes que minha presença se torne insustentável nessa casa, como foi insustentável a idéia da minha presença como criança, como é insustentável a idéia de ter sido abandonado e ter que perdoá-la por isso.

Tão mecanicamente pergunto:

- Como vão as coisas?

- Tudo bem. Nada de mais.

- Cadê a tia?

- Foi ao shopping com a Leila.

- A diretora da escola?

- Sim, e não vem pro almoço.

A conversa é interrompida dessa vez por um chamado proveniente da porta de entrada da casa, e minha mãe vai verificar a natureza da visita matinal.

Subo as escadas largas de madeiras envernizadas, reluzentes como um espelho, e em dois vãos chego aos compartimentos superiores. Analisando esse longo corredor, percebo que da última visita, há quase dois anos atrás, para hoje nada mudou, é o mesmo chão de taco encerado, mesmas paredes pálidas e lisas com uma pequena janela com vista para a rua do lado oeste da casa, um quadro com a imagem de uma bíblia aberta no salmo 91 flutuando sobre montanhas, pois diferente da tia Noemi, minha mãe é, ou se conformou a ser católica, tristemente cristã, e mais a frente, de madeira, um antigo relógio de parede com o pendulo parado e com a numeração em algarismos romanos, o ponteiro menor marca XII e o maior aponta para o VI. Doze e trinta! Seria do início da tarde ou da madrugada?

- Filho.

- Aqui em cima!

- venha cá, por favor.

Desço lentamente as escadas para atender a solicitação de minha mãe e indago:

- Quem era lá fora?

- O entregador de água mineral, veio trazer o garrafão que eu já tinha comprado antes de você chegar.

Coloque no filtro, por favor.

Deito o garrafão com água sobre o filtro e percebo que ela tenta me falar algo, mas não consegue é algo que a perturba, que pesa em sua consciência, alguma coisa relacionado ao passado, e que por não conseguir se expressar carrega esse olhar cansado e ar preocupado todas as vezes que venho aqui.

- obrigada.

- por nada.

E nesse instante meu celular toca, afasto-me um pouco para atender, minha mãe se desloca até a geladeira e procura algo do seu interesse no interior da mesma, eu atendo o telefone, são amigos me convidando para o futebol, talvez seja isso que eu esteja precisando, suar um pouco a camisa, dissipar essa energia melancólica que se propaga aqui e aos poucos me consome.

- Mãe, bem, eu, tenho que ir agora.

Vou encontrar com uns amigos.

- Senta vou servir o almoço antes de você ir.

- Não mãe, não precisa, eu como na rua.

- Leva pelo menos uma maça.

- Ah, tudo bem.

Vou caminhando em direção a porta da sala e minha mãe vem logo atrás me acompanhando, pego a mochila do sofá e... Essa música tocando na rádio, é bem conhecida, é tão antiga:

" Porque se chamava moço

Também se chamava estrada

Viagem de ventania

Nem lembra se olhou pra trás

Ao primeiro passo, aço, aço...."

- Filho.

- oi mãe?

- Me perdoa.

-... Tudo bem mãe, é passado agora.

" Porque se chamava homem

Também se chamavam sonhos

E sonhos não envelhecem

Em meio a tantos gases

lacrimogênios

Ficam calmos, calmos..."

- Me dê um abraço filho.

Minha mãe abraça-me dessa vez diferente, parece mais leve, mais arrependida, talvez esse pedido de desculpas tenha lhe tirado um pouco da carga que a acompanhou por todos esses anos, de não poder ter acompanhado o crescimento do filho , ela talvez só queira recuperar de alguma forma o tempo perdido... não sei como.

- tchau mãe, eu te ligo.

"E lá se vai mais um dia..."

Sigo no caminho de volta pela calçada, o fluxo de carros na avenida e de pessoas no passeio publico já é menor, a chuva também já passou é possivel atá enchergar uns raios de sol surgindo por entre as nuvens.

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Tomb
Enviado por Tomb em 27/08/2010
Código do texto: T2463193
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