Essencial Mente

BLACK SCREEN – Narrador

“Um pouco antes de você morrer, um filme mostrando toda a sua vida vai passar diante dos teus olhos. Mas, se você estiver ligado a altas doses de morfina ou qualquer outra droga, se prepare cara, porque vai ser um filme muito louco. Ah, se vai.”

FADE IN

QUICK MOTION

(Várias cenas passam com cenários e pessoas diversas, sem que se possa relacionar alguma história concreta)

CUT TO

FLASHBACK: CENA 1 – O oposto da indiferença

STORY LINE

Ele sempre a odiou. Ela o perseguia nos corredores da escola, nas esquinas do bairro, atrapalhando os bicos de fim de semana e assustando-o nos pesadelos. O que eu fiz para ela me desejar tanto mal, era o seu mantra diário. Um dia, resolveu enfrentá-la. Vou apanhar com certeza, mas pelo menos tiro este aperto do peito. Encontrou-a sozinha no parque, sentada à beira do lago. Inspirou todo o ar gelado que seus pulmões aguentavam, cerrou os punhos trêmulos, ignorou o som alto das batidas do coração e os avisos de fudeu em sua mente. Aproximou-se com vacilantes passos firmes. Esta situação acaba aqui e agora, olhe para mim. Lentamente os olhos dela subiram vermelhos de lágrimas e encontraram os dele verdes de surpresa. Nunca imaginou ela capaz de chorar. Nunca a percebeu tão frágil. Estava sozinha e percebeu que só ele dava-lhe sentido. Foi quando finalmente entendeu tudo. Ele sempre a odiou.

FREEZE

CUT TO

QUICK MOTION

(Voltam as mesmas cenas, mais rápido, com cenários e pessoas diversas, sem que se possa perceber algo concreto)

CUT TO

FLASHBACK: CENA 2 – Nos olhos de quem vê

STORY LINE

Ele era orgulhoso e insensível. Mas pode algo bom nascer do ruim? Eternamente belo, ele desprezava rapazes e moças perdidamente apaixonados. Morressem aos seus pés nem um mero olhar ganhavam. Maldito, se apaixonarás pela mais cruel criatura que olhares e morrerás aos teus pés em vingança, sentenciou Nêmesis. Foi quando ele teve muita sede e resolveu ir ao lago. Lá, viu o seu reflexo nas águas calmas e perdeu-se no olhar daquele cafajeste. Beijou-o e bebeu-o até morrer. Depositado na margem, ninguém o enterrou. Apodreceu e virou adubo. No meio da ossada apareceu uma pequena flor branca e amarela, que encantava moças e rapazes que por ali passavam, mas que até hoje fica feliz quando se vê refletida nas águas.

FREEZE

CUT TO

QUICK MOTION

(As cenas agora passam tão rapidamente que só se percebem cores e movimentos)

CUT TO

FLASHBACK: CENA 3 – Alma gêmea

STORY LINE

Como saber se ele é a pessoa certa para mim? Era o que ela pensava enquanto olhava para o sujeito todo sujo de barro e com um curativo na altura da costela. Será um hippie ou coisa parecida? Meu Deus, seria muito pedir um homem que viesse só com prós e nenhum contra? Enquanto isso, ele imaginava como seria brincar de fórmula um nas curvas do corpo dela. Mesmo se encontrando pela primeira vez, havia um clima no ar. Bem, talvez tenha sido por estarem nus e sozinhos no jardim. Quando ela insistiu que queria um banho – para convencê-lo que banho existia – ele foi cavalheiro e a conduziu aonde se lavar. Primeiro as damas, milady. Depois, sentou, gemeu olhando o curativo e observou o que viria a ser a primeira cena em câmera lenta do mundo: uma mulher nua banhando-se num lago. Espetáculo. Depois dessa, o por do sol nunca mais chegou a ser top hit. Mesmo abandonando a câmera lenta e passando a cena para frente rapidamente, ela levou duas horas no banho. Ele entrou e pronto, tô pronto. E não é que ele limpinho não era de todo mal? Resolveram trocar entre si as juras mais clichês de todos os tempos, porém inéditas naquela época. Ele só teria olhos para ela e ela nunca iria compará-lo (nem alguma parte específica sua) com outros. Ficariam juntos na alegria e na tristeza, no paraíso ou fora dele, até que a morte os separasse. Depois de um tempo de brigas e crises, rotina e tédio, viram que era hora de apimentar a relação com répteis exóticos e frutas proibidas, ou então seria o fim. O casamento durou, eles não.

FREEZE

CUT TO

FLASHBACK: CENA 4 – Gostoso

STORY LINE

Uma molécula garbosa se pavoneava toda azul quando avistou uma inocente moleculazinha rosa dando sopa (pré-biótica). E até que ela era jeitosinha, dava um bom caldo (primordial). Chegou-se devagarzinho e lançou sua cantada infalível: um pouquinho de esfrega-esfrega em sua membrana enrijecida deixaria qualquer uma doida. A pequena sentiu algo crescer naquela bolinação toda, era a fome, e absorveu o azulão de uma só vez. Quando arrotou, virou duas. No segundo arroto, quatro, e assim sucessivamente, foi arrotando e multiplicando-se, multiplicando-se e arrotando, progressiva e rapidamente. E a reminiscência de um passado em tons azul faziam as milhares de células rosinhas sonharem em príncipes encantados garbosos e vaidosos.

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FADE OUT

BLACK SCREEN – Narrador

“No dia em que o amor morrer, o filme que passará na frente dele não será um filme de amor. Lógico que não. O nome amor não aparecerá nem nos créditos finais. Ao invés disso, surgirão flashbacks com situações em que nunca se pensou que o amor ali estivesse, mas na verdade era toda a sua essência. Isso porque enquanto muitos pensam o amor ser água doce, descuidam-se que ele também pode ser salgado ou amargo. E que, enquanto alguns se banham nele, outros se afogam e uns safadinhos mijam disfarçadamente.”

END

(escrito originalmente em 06.08.2010 no blogue www.jefferson.blog.br)