As Aventuras de Tonico - Uma pena perigosa.



      A arte de manejar bem as palavras, mesmo na infância, me valeu um episódio hilário, mas que doeu na minha pele, aos nove anos, aluno da 3ª série primária.
      Eu estudava pela manhã e, além de preguiçoso, adorava participar de umas peladas de futebol num campinho próximo de nossa escola. Então, algumas vezes, eu escapulia das aulas, uma ou duas horas antes do seu término, apresentando à professora um bilhete “escrito pela minha mãe”, mais ou menos nos seguintes termos:
      “Prezada Dona Marieta. Solicito a sua especial compreensão no sentido de permitir a saída do meu filho Antonio, às 10 horas. Preciso realizar consultas médicas e há necessidade de que ele fique em casa, acompanhando a sua irmãzinha. Antecipadamente agradeço. Leonete.”
      Com esse português perfeitamente correto e imitando a forma da letra da minha mãe, usei o expediente do seu falso bilhete sempre que queria livrar-me mais cedo da aporrinhação das aulas e cair na gandaia das peladas. Só que um dia a minha mãe, indo realmente ao médico, deu um pulo à escola. Dona Marieta, a minha professora, cumprimentou-a alegremente:
      - Olá, Dona Leonete, como vai a senhora?
      - Tudo bem, obrigada, e o meu filho, como vai?
      - Olhe, para lhe falar a verdade, ele vai bem em quase tudo, menos em comportamento.
      Minha mãe franziu as sobrancelhas e olhou feio para mim:
      - Como assim? O que está acontecendo?
      - Ele é bom aluno em todas as matérias: Português, Matemática, Geografia, História, mas...
      - Mas...?
      - Não se sossega na sala. É indisciplinado e muito brigão. E parece não gostar muito de frequentar as aulas. E a senhora está facilitando as coisas para ele...
      - Eu? Como?
      - Algumas vezes, a senhora manda pedir para ele sair mais cedo. E ele aproveita e vai para as peladas de futebol.
      - Eu mando pedir? Que história é essa? Nunca pedi para a senhora deixá-lo sair mais cedo!
      A professora irritou-se:
      - Não manda? Tenho os seus bilhetes, minha senhora!
      - Bilhetes, que bilhetes?
      A professora abriu a gaveta da sua mesa e puxou uns papéis.
      - Olhe aqui! Não foi a senhora quem escreveu esses bilhetes? Está difícil de acreditar que um menino de nove anos tenha escrito isso!
      Minha mãe leu os bilhetes e o seu rosto mudou de cor.
      - Nunca escrevi isso! E essa letra não é minha! Tonico, vem cá!
      Levantei-me da cadeira como um condenado, com uma frase latina na cabeça: Consummatum est.
      As duas me encaravam, furiosas. Dona Marieta perguntou, com voz sibilante:
      - Antonio, quem escreveu estes bilhetes?
      Adiantava negar? Consummatum est!
      - Fui eu, professora...
      Mal tive tempo de terminar a frase, pois minha mãe avançou para mim, cobrindo-me de cascudos, ao que a professora interveio:
      - Por favor, senhora, controle-se, deixe para resolver isso em casa.
      Triste sugestão!... Realmente, o assunto foi resolvido em casa. Com uma espetacular surra de corda de amarrar rede, o instrumento de corrigir filhos preferido por minha mãe.
      A bem da verdade, quero confessar que ainda escrevo umas mentirinhas. Mas isso hoje é chamado de ficção literária e não corro mais o risco de apanhar.






Antonio Maria Santiago Cabral
Publicado no Recanto das Letras em 11/06/2010
Código do texto: T2313841
Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 25/08/2010
Reeditado em 22/03/2011
Código do texto: T2458013
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