[Eleições: Um Processo Natural]
[Eu construí o meu mundo a partir do Chalé Amarelo da primeira infância - depois do Chalé, todos os acréscimos foram supérfluos - era melhor eu nem ter crescido... e cresci mesmo?!]
Eis o processo eleitoral redefinido, num sonho de retorno, a partir do Chalé:
São 3h25 da madrugada e acabo de acordar de um sonho engraçado. Estou ainda aparvoado como todo aquele que retorna do território de um sonho intensamente "real", nítido como um filme. Ainda bem que ao despertar, eu não olhei no espelho - teria visto uma cara estupidificada por um sonho descabido, ainda que engraçado. Conto porque é um alívio a gente falar sobre os sonhos, ainda que sejam absurdos... Que ninguém me acuse de nada, pois ninguém é culpado dos sonhos que tem! Quem me conhece, sabe que eu tenho o hábito de sonhar uma história inteirinha, começo, meio e fim... depois, para me divertir, sento e escrevo, como estou fazendo neste momento. Mas desta feita, o fim da história ficou truncado, pois eu acordei antes da conclusão! O que restou na minha lembrança até que está coerente... se é que sonho tem coerência!
E foi assim... Eu era pequeno, tinha uns seis ou sete anos de idade. Aproximava-se o dia das eleições e eu morria de vontade de saber como era uma seção eleitoral, a cabine de votação, e a urna, como seria? Como eram contados os votos, afinal? Pois a minha mãe, irônica, me disse: "logo você vai saber e garanto que não vai gostar do cheiro!" - Nossa! Pensei... que cheiro teria uma cabine de votação, uma urna?! O aviso dela me atiçou a curiosidade, eu mal podia esperar o dia das eleições, o famigerado "3 de outubro" - o que é a memória da gente... recordo-me perfeitamente da arenga dos alto-falantes... "no dia 3 de outubro, votem em ... para prefeito!"
Enfim, o grande dia chegou. Minha mãe tornou a me avisar - "olha, Carlinhos, você quer mesmo ir com a mamãe? Olha, que você não vai gostar do cheiro!" Insisti: "mãe, assim, sem a senhora me dizer o que é, e por que o lugar fede, eu fico mais curioso ainda!" Ela sorriu: "olha, eu avisei..." Fomos. Chegamos a um enorme terreno murado apenas dos lados, um lugar parecidíssimo com o fundo do quintal da minha casa. Era igualzinho ao terrenão do meu chalé amarelo, mas sem o chalé na frente, só o quintal.
Havia muita gente, uma fila imensa que terminava na "cabine de votação". Bastante simples, coberta de folha de zinco, a cabine tinha apenas uma portinha de entrada, também de zinco. Sentados a uma mesinha escura, havia três funcionários vestidos de branco, placidamente sorridentes. Ali, cada pessoa apresentava o seu título de eleitor, entrava, e fechava a porta. Ao sair, uns dez ou vinte minutos depois, a pessoa tornava a passar pela mesinha, pegava o título de volta, e deixava o terrenão. Ah, e tinha no rosto uma expressão de quem acabava de ter sido ser feliz em algum processo... Não havia ninguém nervoso por ali, todos calmos, cordatos.
"Está vendo aquilo, Carlinhos? É a cabine de votação!" "Mãe... mãe... mas a cabine é igualzinha à privada de buraco do nosso quintal! E a urna, mãe, está lá dentro?!" "Ara, é claro, onde mais estaria, não está vendo a fila, meu filho?" "Nossa... mas aquilo é uma privada... e como é que se vota, mãe?" Ela se tornou ainda mais irônica: "você, um menino inteligente, já devia ter deduzido: a gente senta no vaso e vota!". "Mas mãe, privada de buraco não tem vaso...". E veio a explicação: "antigamente, todo mundo votava agachado, mas, desde a eleição passada, é assim que a gente vota, sentado num vaso de privada patente! Os mais velhos agradeceram a mudança! Ah... e não importa a quantidade, e um tiquinho que seja de cocô já é computado como um voto!" "E por que os funcionários estão de branco?" Tranqüila, tranqüila, ela riu mais ainda: "ah, isso eu não sei, deve ser para simbolizar a pureza do processo!" Eu não percebia nada, mas a minha cara de espanto deve ter provocado risos, pois todos ali em volta aguardavam pacificamente na fila a sua vez, e pareciam achar bastante natural esse processo de votar ... numa privada!
"E olha só, Carlinhos, pode ficar orgulhoso do seu país: o resto do mundo também vota assim, mas não tem o vaso para sentar; este é um processo moderno, só tem no Brasil!" "A senhora vai ter de entrar lá também?" Ela sorria: "oras, então você não sabe que o voto é obrigatório? E além disso, todos são iguais perante a lei, não são?"
Agora, eu queria mais detalhes, o voto em si... "Ah, sim, cada pessoa entra na cabine, recebe um pedaço papel higiênico macio, de boa qualidade, e confortavelmente sentada no vaso, faz um monte de cocô, que cai lá embaixo e é registrado numa planilha, essa é a prova do voto! Está vendo aqueles degraus de terra ao lado da cabine? É uma escada em espiral que desce contornando o buraco da cabine; lá embaixo tem um visor de vidro que permite um funcionário verificar se a pessoa votou ou não!" "Ara... mas e se a pessoa não conseguir fazer nada!?" "Será voto em branco; e antes que você pergunte: não tem jeito de anular o voto!"
Agora, o fedor já estava ficando insuportável, reclamei - "ara, seu menino cabeçudo, teimoso, bem que eu avisei"! E ajuntou: "mas não faz mal não, um dia você também irá votar da mesma maneira! E assim, ninguém pode me acusar de não ensinar aos meus filhos, desde cedo, como é a instituição principal da democracia, o processo natural do voto livre e independente!" "Processo natural... mas que processo, hein, mãe?!" Fiz um esforço danado para fazer sentido dessas palavras, mas...
***
Acordei. Diabos! Não pude perguntar a ela como é que as pessoas destinavam o seu voto para este ou aquele candidato, e como votavam nos candidatos para outros cargos... será que a eleição era uma disputa entre dois candidatos, e a definição era feita verbalmente, logo após a defecação? O funcionário, olhava pelo vidro do fundo da privada, e ao confirmar a queda da merda fresca, gritaria lá de baixo: "pronto, voto registrado — pra quem é?" Já de pé, e ainda se limpando, a pessoa olhava para o vaso sanitário assentado sobre um buraco no assoalho de tábuas da privada, e gritava: "o meu voto vai para fulano de tal!"
Bem, mas isso aí sou eu e a minha mania de completar os sonhos depois de acordado! Os sonhos são o território do absurdo... mas e a vida? Acho que o absurdo é a matéria fundamental da vida... ou não? Também, no dia em que sonho tiver um arranjo lógico, talvez se descubra um sentido para a vida... que sei eu? Nada!
Como sempre, tudo é... mas também não é; depende do jeito de olhar!
[Penas do Desterro, 08 de julho de 2008]