A morte da professora
Ela chegou assustada, Há pouco recebera a notícia do falecimento da sua ex-professora. A sua morte trouxe-lhe muitas lembranças e muita comoção.
Começou falar sem parar, a notícia realmente havia mexido com ela, deveria gostar muito da antiga professora.
“Oh, por alguns segundos vi sua imagem refletida na cerâmica da parede, o bastante para olhar aquele jeitinho de ser que era só dela. Aqueles cabelos cacheados de cor acobreada, olhos puxando para o azul e pele bem branquinha! Que saudade de minha infância. Oh professora, você me ajudou muito!” Completou.
Estava falando da Dona Maria, uma excelente professora! Era a mulher mais importante da cidadezinha de mais ou menos dez mil habitantes, respeitada por todos. Para ela, dizia ser um exemplo, ou melhor, um espelho. Quando criança sonhava em ser exatamente igual a ela quando crescesse.
Em prantos contou uma história inusitada.
“Entre meus dez e doze anos, inspirada em minha querida professora, criei uma escolinha de bonecas. Na qual eu fazia o papel de professora e as bonecas de alunos. Como não tinha muitas bonecas, para completar o número de alunos da escolinha, vestia algumas latas de óleo de soja para que ocupassem os lugares vazios. A partir daí passei a imitar a professora em tudo que fazia na sala de aula, a imitação ia da organização da sala, às atividades e atitudes. Os alunos “atendiam” como “alunos latas e alunos bonecas”. Claro que automaticamente os alunos latas ocupavam a fileira do fundo e eram classificados sempre como alunos indisciplinados e de pouca inteligência. Exatamente como minha querida professora fazia, os burros sentados no fundo, principalmente os pretos. De vez em quando eu expulsava um da sala, ou seja, jogava uma lata fora, isso acontecia sempre que ganhava uma boneca nova ou algum colega da escola de verdade desaparecia por expulsão ou castigo. Nas atividades extraclasse alguns alunos latas ficavam de castigo em casa. Numa certa ocasião a professora levou a turma para uma pesquisa de campo numa usina hidrelétrica, claro, que elegi as três bonecas mais bonitas para levar escondidas na mochila. Igualzinho minha querida professora, só ia no passeio os melhores alunos. Seria uma pesquisa importante, tinha como objetivo fazer entrevistas com os funcionários e observar o funcionamento da usina. Não descobri quem contou, mas a professora ficou sabendo que as bonecas estiveram presentes no passeio o tempo todo, fato que atrapalhou a atenção de todos nas explicações do funcionário da usina. De volta à escola, deveríamos passar tudo para os que não puderam participar devido o mal comportamento.”
E continuou com a choradeira e contando toda sua vivência com a excelente professora:
“Em minha escolinha de bonecas tudo caminhava exatamente igual a escola de verdade, com direito a recesso escolar, férias e retorno em fevereiro. Levava a coisa tão a sério que às vezes preocupava minha mãe, com a ocupação de seu quartinho de costura. Quando um colega da classe ficava sem recreio por não ter feito a lição de casa, ou por ter errado o exercício no quadro negro ou simplesmente por ter esquecido o lápis em casa, na minha escolinha algum aluno lata também era castigado”.
Fez cara de brava e relatou uma outra passagem. Absurdo total!
“Tudo corria as mil maravilhas, até que no final da quinta série aconteceu uma tragédia na minha escola de verdade. Depois de um longo ano de dedicação, muitos trabalhos, no meu caso, trabalho dobrado, pois eu repetia toda a aula na minha escolinha, por algum motivo que agora não vem ao caso, os professores decidiram em um “Conselho” que toda minha classe deveria ser reprovada. Até sabia que na sala tinha algumas “latinhas” indisciplinadas que não queriam saber de estudar, mas quando recebi a notícia levei um susto. Não era justo! E como repetir tamanha injustiça em minha escolinha de bonecas? Lá eu tinha muitas bonequinhas dedicadas! E minhas bonecas louras, de cabelos compridos, até bonecas que falavam iam ser reprovadas! Como explicar que depois de todo esforço elas iriam acabar o ano igual às latinhas preguiçosas e indisciplinadas da minha escola de verdade? Bom, mas a desgraça não parou por aí. Teria ainda que enfrentar a minha mãe depois da reunião com a professora. Não demorei a saber que ela tratou logo de colocar a culpa em minhas bonecas. Contou tudo para a professora e é claro que esta não achou nada engraçado, inclusive aproveitou para reclamar sobre a visita na usina e minhas convidadas. Chegando em casa, minha mãe acabou com minha escolinha. Jogou os meus alunos latas no lixo e enfiou os alunos bonecas em um saco preto e pôs num grande baú herdado da minha avó. Não contente me deixou de castigo por uma semana, proibida de brincar com minhas primas que tinham passado de ano. Lembro-me que o ano seguinte foi o pior em toda a minha vida. Passei o ano inteiro tendo a sensação de estar vendo o mesmo filme todos os dias. Minha querida professora era muito severa, reprovou todos para dar exemplo aos indisciplinados. Buaaaaa!”
Não entendia-se onde queria chegar com aquela choradeira. Como conseguia sentir saudades de um tempo tão tenebroso? Por que tanta comoção com a morte de uma professora que teve coragem de reprovar uma classe inteira? De deixar crianças de castigo e sem recreio só porque não tinham lápis para escrever? Como conseguiu guardar tantas lembranças ruins e ainda chorar porque a velha morreu?
Ela explicou.
“Superei o trauma da reprovação, me formei professora. Hoje choro por gratidão. Além de ter sido a minha professora, ela foi também a minha melhor orientadora pedagógica enquanto eu lecionava na minha escolinha de bonecas. Lá aprendi tudo o que NÃO se deve fazer com um aluno. Obrigada, professora!”