"Parentes..." = Conto=
A nora lhe fazia grosserias sem motivo algum e ele apenas ria. O filho lhe dava patadas e ele levava na brincadeira.
- “Maltrata, cambada. Maltrata que eu gosto...Nem meus netos escapam nessa casa. Cambada de gente mal educada, grosseira, sem sentimento algum e sem respeito nenhum por mim. Não podem imaginar o que os espera”.
- Meu filho, essa sua casa é tão grande e vocês me deram aquele quartinho dos fundos. Ali não tem nem como colocar meu computador de jeito a poder trabalhar.
- Ora, pai...É impressionante mesmo...Como diz minha mulher, pra você a gente dá a mão e logo quer o braço todo. Aquele quartinho é muito bom, ventilado, te permite privacidade...
- A privacidade a que você se refere é eu não incomodar quando entro e saio dele. É pequeno, úmido e perigoso, sem segurança alguma. A porta mal está fechando.
O filho riu com desdém.
- Então, pai, o jeito é o senhor sair daqui e alugar uma boa cobertura, bem chique, em um dos bairros nobres da cidade.
Ele não se deu por vencido:
- É. Pode ser uma boa solução. Que bairro você me sugere?
- Na atual conjuntura, que tal o Morumbi? Ficará bem de acordo com sua aposentadoria, velho.
Ele olhou para o filho com raiva. Detestava ser chamado de velho e o filho sabia disso. Sessenta anos não é idade ainda pra ser chamado de velho. Mesmo que fosse, ele detestava a palavra quando se referiam a ele. O filho a usava de propósito para aborrecer e humilhar.
A nora passou por eles, ouviu um trecho da conversa, e de longe, lá da sala, deu seu palpite:
- De preferência que seja um bairro do outro lado da cidade, sogrinho...
- Delicadíssima essa cavalgadura com quem você se casou, meu filho. Um tesouro de esposa.
- Mais respeito, pai. Ela está na casa dela.
- Nem por isso deixa de ser uma cavalgadura. Uma cavalgadura que só tirou a máscara depois de casada. Ainda me lembro bem de quando ela era apenas sua noiva e freqüentava nossa casa. Era tão falsa que vivia sorrindo para todos nós, lavando louças depois das refeições, fingindo que gostava de cães e gatos, enfim, mostrando ser tudo que não era.
- O senhor está abusando, pai...
- E olhe que eu não disse nem a metade do que tenho vontade de dizer. Quer ouvir o resto, marido frouxo do cacete? Quer ouvir, meu caro filho bunda mole e dominado pela esposa?
- Melhor parar por aqui, pai. Antes que eu tenha que lhe pedir que vá embora de minha casa.
- Você não precisará pedir, meu filho. Eu já estou indo embora de sua casa e com muito prazer. Essa minha estada aqui foi apenas um teste. Um teste no qual vocês dois foram mais do que reprovados. Aliás, vocês dois e seus dois filhos malcriados e insolentes.
- Nem meus filhos vão escapar de sua fúria, velho?
- Se você me chamar de velho mais uma vez, uma vez só, moleque, eu vou te cobrir de porradas dentro de sua casa. Ainda tenho força sobrando pra isso. E não será coisa de pai para filho e sim de homem pra homem. Duvida?
- Não estou entendendo o motivo de tanta revolta, pai. Afinal de contas, o que foi que a gente te fez?
- Ainda pergunta? Há quase um mês eu cheguei aqui e lhe pedi para me acolher por um tempo até que eu resolvesse algumas coisas particulares. Você logo deduziu que estou necessitado e tanto você quanto sua mulher e seus filhos, que, aliás, chamam de “vovô querido”, “vovozinho”, etc. ao seu sogro, deram-se o direito de chamar-me pelo nome como se eu não merecesse o chamamento normal que os netos devem usar. Você, seu cretino, mal me cumprimenta pela manhã ou a qualquer hora do dia. Não esconde que está custando a me suportar em sua casa. Sua mulher dispara as grosserias contra mim como se eu fosse um mendigo acolhido aqui por caridade. Mas, pode ter certeza, quando vocês ficarem sabendo o motivo real de minha estada em sua casa, ela vai querer lamber meu saco de arrependimento.
- Posso saber que motivo é esse?
- Pode. Foi uma aposta com sua mãe. Há muito tempo ela quer que eu te ajude, que eu te dê uma força financeira pra valer. Ou seja, quer que eu resolva todos seus problemas de grana por ser único filho homem. Eu sou contra e expliquei a ela meus motivos. O principal deles é sua inegável ingratidão durante toda sua vida. Você é do tipo para o qual se pode carregar água em um balaio, mas se achar que tem direito a um real, lutará por ele até o fim. Não é essa sua filosofia? Já usou até comigo essa frase que sintetiza, ao extremo, o cúmulo da ingratidão.
- Acho que o senhor está enganado. Sempre fui grato pelo que fez por mim.
- Foi mesmo? Então vejamos: na festa de formatura você levou muitos minutos agradecendo a seus professores, aos colegas, ao diretor da universidade, namoradas e sei lá a mais quem. Não teve uma única palavra de agradecimento a mim e à sua mãe.
- Acho que não foi bem assim...
- Foi bem assim, sim. Depois precisou de avalista para alugar essa casa, recorreu a mim e está morando aqui desde que se casou.
- Mas os aluguéis sempre foram pagos em dia.
- Conversa fiada. São pagos em dia porque eu pago e pego o dinheiro de volta quando você se lembra de pagar. Afinal de contas o proprietário é meu amigo e não gosto de vê-lo passar aperto por sua causa.
- Eu não sabia disso.
- E se soubesse não faria mínima diferença. Aliás, aproveito para lhe comunicar que não renovarei o contrato como avalista seu. Nos Natais e passagens de ano, desde que você se casou, eu e sua mãe somos as últimas pessoas de quem se lembra para visitar ou mesmo para telefonar. Quando muito, leva um presentinho muito vagabundo pra ela dois ou três dias depois, mas para a esposa e os filhos gasta até o que não tem para aparecer.
- O senhor está reclamando por causa de presente de Natal?
- Deixe de ser imbecil, moleque. Se bem que no seu caso deixar de ser imbecil
é difícil. Estou falando em consideração pelos pais. Coisa que você não sabe o que é.
- Enfim, até onde o senhor quer chegar?
-Vamos para o fim do assunto de uma vez: apostei com sua mãe que eu seria mal recebido e pior tratado em sua casa caso um dia tivesse necessidade de passar um tempo com vocês.
- Tá bem. Foi maltratado. Acha que foi. E daí?
- Daí que vocês se ferraram. Você, sua mulher e seus filhos.
- Posso saber como?
- Terei prazer em lhe contar quando achar que devo. Antes de vir para sua casa passei uns tempos com sua irmã. Que diferença..! Ela e o marido me trataram com carinho, atenção, cordialidade, preocuparam-se com meu bem-estar e propuseram-se a ajudar-me caso estivesse precisando de alguma coisa. Não precisei de nada, felizmente, e tive o prazer de passar um mês na casa deles. Deram-me um bom quarto depois de ajeitar os meninos na sala, pediram ao provedor que esticasse um cabo para minha internet, sua irmã me beijava todas as vezes que passava por mim e demonstrava de todas as formas que eu era querido por ela e estimado pelo meu genro. Tudo ao contrário do que aconteceu aqui nessa casa triste, sem harmonia, sem paz, sem diálogos agradáveis entre marido e mulher e entre pais e filhos. Uma casa que nem de longe se parece com um lar.
- O senhor está a fim de me derrubar de vez...
- Falar a verdade é derrubar alguém? Ainda há tempo de vocês corrigirem a vida besta que levam, mas não compete a mim ensinar como.
- Já que tocou tão “delicadamente” no problema, porque não pode dar pelo menos uma sugestão de solução?
- Até posso, mas no caso de vocês dois acho que não adiantará muito.
-Por quê?
-Pelo simples fato de que vocês dois optaram por viver de aparências. Querem levar um padrão de vida que não é o de vocês, escorados em cartões de crédito, limites de banco, e talvez até empréstimo pessoais, para levar uma vida que não podem levar.
- Mas pelo menos nunca lhe pedi empréstimo algum.
- O “nunca” que você diz refere-se a um período de quanto tempo? Alguns meses? Desde minha última recusa? Se você corrigir a frase ela ficará sendo “você nunca me emprestou dinheiro quando lhe pedi”. Não emprestei e não emprestarei nunca para não sentir que estou bancando o luxo desnecessário em que vocês acham que têm que viver. Durante toda minha vida ganhei muito mais do que precisava e sempre levei uma vida modesta, sem grandes luxos, sem exageros, sem esbanjar dinheiro para pavonear-me perante os outros. Bem ao contrário de vocês dois. Não, o meu “filhinho” não pode andar em um carro classe média. Tem que andar em carro de luxo, usar roupas de grife, perfumes importados, tênis americanos, óculos da moda, tudo isso pra mostrar que está bem de vida e impressionar bem os possíveis clientes. Vai nessa, bestalhão. Ninguém consegue fingir que é rico usando coisas de rico. Só se mostra que é rico tendo dinheiro de sobra. É o único jeito de impressionar sem precisar impressionar ou demonstrar. Quem conhece gente rica, conhece até pelo olfato. O que não é o caso de vocês.
- Essa não...O senhor quer dizer que não sei distinguir um rico de um classe média?
- Exatamente isso. Quer um exemplo? Me fale sobre seu sogro. Ele é um homem rico?
- Todo mundo sabe que é.
- Todo mundo, menos ele. A empresa dele está sobrevivendo, a duras penas, porque é meu amigo de muitos anos e continuo lhe dando crédito e apoio. Se eu parar de ajudar seu sogro, garoto, ele terá que lhe pedir para morar naquele seu quartinho infecto onde vocês me hospedaram tão gentilmente. Se duvida, pergunte a ele.
Aos poucos a nora havia se aproximado e ouvia calada. De repente resolveu interferir:
- Olha, meu sogro, há algum tempo que venho conversando com seu filho sobre esse assunto...
- Que assunto?
- Relacionamento de família. Com toda sinceridade, não tenho gostado do jeito que temos convivido com o senhor e com sua esposa, minha querida sogra, sempre tão delicada e prestativa com a gente.
Ele riu com gosto.
- Que coincidência, minha tão querida nora...Logo agora que eu disse tudo que pensava você resolveu me contar que está se preocupando com esse assunto...Comovente a sua bondade. Se bem que, a bem da verdade, nós não temos “convivido” coisa nenhuma. Vocês levam a vida de vocês e simplesmente nos ignoram totalmente. Aliás, desde o momento em que se casaram. Ou você será capaz de me mostrar uma foto da festa de casamento em que eu e minha mulher aparecemos? O fotógrafo que vocês contrataram deve ter sido instruído a nos ignorar solenemente. E o irônico da coisa é que a festa foi feita com dinheiro que eu emprestei a seu pai, que não queria “ficar por baixo”.
- Ele nunca me contou isso, meu sogro.
- De repente eu virei “seu sogro”. Até meia hora atrás era apenas o homem qu estava enchendo o saco em sua casa.
- Essa discussão vai levar a alguma coisa, pai?
- Não está havendo discussão, filho. Está havendo uma explanação de minha parte a respeito de nosso relacionamento, ou seja, nós quatro, eu, minha mulher, você e sua esposa. Sem incluir seus filhos, que ainda são crianças. E essa explanação levará a alguma coisa sim.
- A que?
- A uma decisão que tomei ontem à noite. Uma decisão que afetará a vida de sua irmã e a sua diretamente.
- E...?
- Quanto à sua irmã, sem problema algum. Ela receberá uma boa parte do que lhe caberá de herança dentro de pouco tempo. Mas você só receberá sob certas condições e depois de um bom tempo. Condições que se não forem cumpridas à risca o deixarão lutando para manter as aparências até o fim da vida, acho eu. Mas saiba que o que estarei fazendo será apenas por amor e consideração à sua mãe. À mulher que é o amor de minha vida e que é mãe. Sua mãe, se bem que você nem sempre se lembre disso. Por mim, francamente, eu pura e simplesmente o deserdaria.
- Tudo bem, pai. Me diga que condições são essas que o senhor quer impor.
- Falou em herança, interessou...Bem, é o seguinte: vocês dois farão uma lista completa, completíssima, de todas as dívidas que têm atualmente. Uma lista honesta e mais completa possível. Com essa lista em minhas mãos, providenciarei o pagamento de tudo, absolutamente tudo. Ou seja, limparei os nomes de vocês, mas em troca disso eu exijo uma mudança radical no modo de viver dessa família. Quero que passem a viver de acordo com seus ganhos reais, sem luxos falsos, despesas com supérfluos, carros suntuosos e viagens internacionais. Estão me entendendo até aqui?
- Claro, pai. Por quanto tempo teremos que viver assim para fazer jus à herança?
- Cinco anos pelo menos. É um prazo que lhes dará consciência que é melhor viver com o que se tem do que com o que se terá, talvez, um dia, que é como vocês têm vivido. Estão de acordo?
- De pleno acordo, meu caro sogro.
- Cem por cento de acordo, pai.
- Então, tudo bem. Depois cuidaremos dos detalhes. Agora vou dormir que o cansaço bateu pra valer. Boa noite, meus filhos.
- Boa noite, pai.
- Boa noite, seu Antero.
Em seu quartinho nos fundos da casa, Antero fechou a porta cuidadosamente, ajoelhou-se e rezou fervorosamente. Suas preces eram dirigidas diretamente a Deus e seu pedido era que Ele colocasse juízo na cabeça do filho.
- Dá pena, não é, amor?
- Se dá...Seu pai é uma pessoa tão boa...Sempre foi amoroso, prestativo, apaixonado pela família e era uma das pessoas mais compreensivas que já conheci em minha vida. O trauma foi demais para ele, coitado. Enlouqueceu de vez, mas felizmente uma loucura mansa, sem atitudes violentas.
- Perder minha mãe e minha irmã e meus sobrinhos no mesmo acidente quase que o matou de dor. Será que valeu a pena ter sobrevivido?
- Tenho minhas dúvidas, meu bem. Há seis anos ele fala as mesmas coisas todas as noites. Ainda bem que tem o filho mais paciente do mundo.
- E melhor nora que já existiu, minha paixão.
- Só não entendo porque você dá tanta trela a ele. Acho que assim o anima cada vez mais.
- Se eu não responder, meu bem, ele achará que é mais uma prova de pouco caso e ficará ainda mais triste. Devo isso a ele. Isso e muito mais. Enquanto foi são, lúcido e ativo, foi o melhor pai que uma pessoa pode ter. Carro de luxo...viagens internacionais...padrão de vida...Seria para rir se não fosse trágico, querida. Nossa casa cada vez mais feia e pobre, nosso velho Opala implorando por uma oficina e somos acusados de viver acima de nossas posses...Coitado do meu velho...