Pesadelo
Ela girou o corpo no meio da noite, empurrada por sonhos agitados. Sozinha em meio à vastidão do oceano, não sabia exatamente aonde ir. As ondas hora a cobriam e empurravam para o fundo, hora pareciam puxá-la à superfície, apenas para experimentar o sol escaldante que queimava a pele e feria seus lábios até sangrarem. A boca seca de quem se afoga lentamente e desidrata em meio aos bilhões de litros de água salobra.
Levantou-se suada e assustada. Ofegante, enxugou a testa, acendeu a luz da cabeceira na tentativa de reorientar a mente. Olhou para o chão e lá estava o porta retrato e a foto já um pouco esmaecida que resistia como prova de dias felizes.
Abaixou-se e estendeu as mãos enrugadas na tentativa de recolocar o passado no lugar.
Na foto, dois jovens apaixonados e cheios de esperanças e sonhos. É mesmo uma pena que as fotos não possam capturar a alma do que existe por trás das aparências. Talvez assim ela pudesse sentir novamente o calor gostoso daqueles momentos, quando ele sustentava delicadamente as suas mãos e nelas depositava seu olhar devotado e otimista.
O tempo roubara-lhe aqueles dias, dos quais restavam agora uma cama vazia e uma foto amarelada, um fogo queimando invisível, reclamando tudo em que fosse possível deitar as suas chamas.
Ergueu-se penosamente, mas agradecida por poder afastar-se um pouco das dores que circulavam naquele quarto como fantasmas. Foi até a geladeira e serviu-se um pouco da água gelada.
O relógio da parede marcava duas horas da manhã. Ele se atrasava sempre, alguns segundos todos os dias e talvez estivesse uns cinco minutos atrasado. Olhou para ele com um sorriso indiferente. A exatidão das horas não importa mais para pessoas que não têm um trabalho ou uma tarefa a cumprir. Decidiu ali mesmo, na madrugada, que seria bom tomar um chá.
Acendeu o fogo para esquentar a água. Colocou água gelada para que tivesse mais tempo antes que as bolhas começassem a se formar. Não apreciava modernidades como microondas. Aprendera que apressar o tempo era uma tolice comum da juventude, sempre precisando chegar a algum lugar. E quando o finalmente chega o tempo, o que ele traz é o fim e o peso das lembranças nos ombros. No fundo viver é uma sucessão de finais e pequenas renuncias que se somam ao longo da vida.
Ela agora permitia-se sentar na pequena mesa da cozinha, tendo por companhia apenas uma xícara de chá de camomila e alguns biscoitos, mal destoando do silêncio que se fazia em volta.
De repente, um som de lata sendo virada. Algum cão solitário. Imaginou se seus pensamentos seriam tão vazios quanto o seu, seguindo apenas os fluxos da vida.
Naquele momento não se sentia humana em si mesma. O humano dependia do olhar e do sentimento de outros. A solidão desumaniza e lembrou-se das pessoas circulando pelas ruas úmidas e sujas, umas como cordeiros apartados, outras como feras perigosas.
O que ela seria?
O barulho cessou. Talvez o cão tivesse encontrado o que procurava ou então simplesmente desistido e ido embora frustrado.
Às vezes imaginava se seu coração não era também uma lata sendo revirada em busca de restos.
Suspirou longamente, sentido o calor que subia da xícara e entrava por suas narinas meio flácidas. O aroma reclamava nela algo bom, uma valsa, um abraço carinhoso, um passeio de mãos dadas ao entardecer.
A mente acalmada e o peso das pálpebras a empurraram de volta para a cama.
O novo adormecer lhe trouxe de volta, por uma fração, à juventude que amara. Nem a artrite atrapalhou. Naquele momento ela era jovem e desejada e o destino era apenas uma possibilidade distante.
Na cozinha o ponteiro do relógio girava, atrasando alguns segundos. Mas o destino, esse nunca se atrasa.