[inacabado/sem título] Parte 1

Alguém me havia dito que chegaria às oito. Mamãe e Papai nunca podem passar-me o recado corretamente, ainda mais quando se aproxima a hora do almoço e suas idéias estão todas voltadas à comida. Alguém viera pro castelo hoje pela manhã enquanto eu dormia, às onze, e deixara um recado com Raimondo, o anão que olha o portão lá de fora. Acho bonitinho ele, aos fins de semana usa um comprido chapéu vermelho e pontudo como se fosse uniforme. Onde ficava o relógio? Esquecera-me completamente de onde o relógio ficava. Há longo tempo que não o precisava! E agora precisava com urgência. "Mamãe, o relógio, onde é que está?" Desde pequena chamei Mamãe pelo nome, mas não me permitia hoje em dia chamá-la por este porque perceberas há pouco que o desgostava muito. Também sempre achei um nome muito invulgar, e cogitava mil coisas as quais vovó poderia estar pensando quando o escolheu. Talvez estivesse ela num momento desgostoso ou talvez muito empolgada. "Tá no rez*!" Um pedaço de pão saltou de sua boca. Mamãe estava tomando o chá das sete, aquele que vem depois do das seis e antes do jantar. "Vai menina, que oito horas se aproximam. Veste um daqueles vestidos que te comprei!" Agora uma uva passa. "Mas mamãe, aqueles vestidos compraste há três anos, cresci e dei-os à Raimondo para presentear as filhas que nasceram agora, tão gordinhas as sortudas..." Mamãe encarou-me com os olhos sujos em volta com geléia avermelhada. "Ah jura? Não soube, quantos anos tu tens agora filha?" Quantos anos... Ora, por todos brioches que há! O relógio, cadê!? No rez. Desci desengonçada a escada à caminho ainda do terceiro piso, mas aí me ocorreu que se Mamãe tomava o chá das sete, eram sete! Subi de volta as escadas, só prestando cuidado ao tapete que se enrolava na ponta em dias de chuva. Merda, chovia! Preferi acreditar que a carruagem que viria era coberta. Trajei-me toda de azul-marinho. Sentei-me depressa na plataforma elevatória* e mais depressa ainda transportei-me até o rez. Raimondo estava lá como sempre com postura zelando os arredores de nossa propriedade quando decidi dar-lhe um susto. Na ponta dos pés, locomovi-me para perto dele e puxei-lhe de leve as orelhas, grandes, pontudas e geladas. Não me deixava nada satisfeita o fato de Raimondo parecer-se com um duende. Não que eu já tenha visto um, mas Mamãe sempre diz às visitas que, apesar de Raimondo ser feio como um duende, é belo por dentro. Acredito desde então que um duende seja baixinho, narigudo, com dentes tortos e pele avermelhada. Sorri forçadamente quando Raimondo virou-se pra mim e resmungou algo. Era tão feio e magricelo o coitado que deixava todos a sua volta desconfortáveis. "Tua mãe mandou dizer-te para avisar ao cavalheiro que te traga de volta antes do amanhecer." Logo pude ouvir trotadas se aproximando. "Como estou, Raimondo?" Fitou-me um bocado até responder. "Se vais a buscar fogo*, diria que esta bem." Era tarde demais para tentar entender o que ele quisera dizer com isso. Um belo cavalo preto parou em frente ao portão, foi quando este se abriu. Subi ansiosa na carruagem, mas estava vazia. Só do lado de fora que havia um magro alto de terno e gravata borboleta, o cocheiro. Mal sentei-me e já estávamos em movimento. "Pra onde é que vamos, senhor?" O velho fitou-me de soslaio e não respondeu. Certamente não ouvira. Pois repeti, e não é que o homem era surdo? Talvez fosse melhor esperar pra ver.

Depois de meia hora de viajem, calculo, já me senti sonolenta. Mas não podia dormir, meu príncipe não quereria ver-me com a cara amassada. "Podes parar numa estalagem pra eu beber um pouco d'água?" Esquecera-me de que o velho não ouvia. Porém, depois de poucos minutos, o cocheiro estendeu a mão para mim com uma garrafa bonitinha entre os dedos. Por curiosidade e também por sede, peguei. Achei agora que o velho era mudo, coitado. A garrafa era de vidro e tinha um formato familiar. Uns quinze centímetros de comprimento, sem tampa. Devia ter sido usada alguma outra vez, ou o velho teve a boa vontade de abri-la para mim. Sem mais observações, dei um gole. Logo, outro. De primeira achei que fosse refresco de laranja, mas depois um cheiro de bambu muito forte veio. Pouco depois a bebida já parecia ser o caldo de uma sopa de galinha. Despejei o resto do líquido pela janela.

Gio Mattiello
Enviado por Gio Mattiello em 06/08/2010
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