Quem seriam eles?

 

José morava numa cidadezinha do interior de São Paulo, com a mulher Guiomar, os filhos Jesué, Aparecida, Quincas, Maria, Murilo, Dimas, Fátima e o caçula Zezinho.

Apesar da pobreza viviam unidos.

Um dia, seu irmão Francisco foi lhes fazer uma visita e quando viu as condições tão sofridas sob as quais viviam, insistiu para que mudassem para São Paulo, onde ele morava.

- Lá vocês poderão viver melhor, sem tantas necessidades. As empresas de construção civil em São Paulo estão sempre precisando de pedreiros e serventes e os meninos logo estarão empregados. Na empresa onde trabalho sou chefe dos graniteiros e estou precisando de alguém pra me ajudar. Se você quiser, poderá trabalhar comigo. Empregadas domésticas honestas são disputadas a unhas e dentes e, com certeza, as meninas logo estarão empregadas também, ganhando seu dinheirinho. Perto de casa tem uma casinha de fundos para alugar, converso com a proprietária e alugo pra vocês. Faz tempo que a Cecília está querendo trocar os móveis de casa, então aproveito compro móveis novos pra ela e dou pra vocês os móveis antigos. O que acha, meu irmão?

Depois de pensar um pouco decidiu aceitar a proposta do irmão. Não tinha nada a perder mesmo, pois nem a casa onde moravam era deles. Vendeu a mesa, as cadeiras, as camas, o fogão a gás, juntou as poucas roupas que tinham e foram para São Paulo.

Iam felizes! Finalmente iriam vencer na vida. Já podia ver toda a família trabalhando e ganhando muito dinheiro. Tudo estava bem planejado. Ele trabalharia como graniteiro, junto com o irmão. O Jesué, o Quincas, o Murilo e o Dimas, trabalhariam como pedreiros. A Maria e a Aparecida, trabalhariam como empregadas domésticas. A Guiomar cuidaria da casa, do caçula Zezinho e da Fátima, a filha com deficiência mental. Tudo daria certo. Além disso, o irmão lhe prometera ajudar no começo. E ele sempre cumpria sua promessa.

Chegaram a São Paulo cheio de sonhos. Dentro de pouco tempo estariam bem de vida!

Tal qual havia prometido, o irmão alugou a casinha de fundos que havia perto de sua casa e a mobiliou também.

No começo ficariam um pouco apertados ali, mas logo teriam condição de alugar uma casa maior.

E com essa esperança em mente começou a trabalhar com o irmão. Mas, cortar pedras de granito não era bem como imaginava. Felizmente, com a ajuda do irmão, aprendia rápido. O irmão era dinâmico, extrovertido, bem diferente dele que só falava quando o interpelavam.

Os filhos, como o irmão dissera, logo já estavam empregados na construção civil e as filhas como empregadas domésticas. Tudo estava dando certo.

 Iriam vencer, com certeza!

Porém, com o passar dos meses as coisas começaram a complicar.

Quincas e Murilo sentiram-se explorados e se revoltaram.

O primeiro escolheu o caminho da bebida como forma de protesto, e o outro desistiu de trabalhar.

Aparecida arrumou um namorado, casou-se e mudou-se para outro estado. E Maria também fez o mesmo.

Dimas decidiu trabalhar como office-boy num supermercado e só Jesué continuou na construção civil.

Guiomar achou que se pegasse alguma roupa pra passar poderia ajudar um pouco no aluguel. E assim fez.

E, aos trancos e barrancos, foram levando a vida. Um dia Jesué disse:

- Pai, vou voltar para o interior, pois também não estou agüentando mais isso aqui. Vou me casar e morar lá.

E lá se foi o filho mais velho.

Quincas, que havia entrado para o mundo da bebida, conheceu uma jovem evangélica, tornou-se religioso, parou de beber, casou-se com ela e também voltou para o interior.

Dimas, cansado da agitação do supermercado e se sentindo explorado também, disse:

- Pai, também vou voltar para o interior. Explorado por explorado prefiro ser explorado lá.

E lá se foi ele levando consigo o Murilo.

A família agora estava reduzida, mas nem por isso as coisas melhoravam. Como grafiteiro, também começou a se sentir explorado.

Começou a duvidar do otimismo do irmão, a ficar mais introvertido, até se sentir completamente isolado do mundo.

Fátima começara a sofrer convulsões epiléticas e o cuidado com ela teve que ser redobrado. Felizmente Zezinho quase não dava trabalho.

Guiomar estava gostando da vida ali e ainda tinha esperança de realizar seu sonho.

Era uma grande sonhadora!

- Tudo dará certo, José, você vai ver. Não podemos desanimar – costumava dizer, sempre que o via deprimido.

Ele olhava pra ela e dizia:

- Não sei não. Os meninos já voltaram pro interior e acho que a gente devia fazer o mesmo.

- O quê? Pras pessoas dizerem que fracassamos? Não. Prefiro morrer aqui que voltar pra lá.

E foi o que aconteceu. Um dia levantou-se mais cedo do que de costume, foi buscar o pão e o leite na padaria que havia perto de sua casa, sentiu uma forte dor no peito, caiu e ali mesmo morreu.

Não quis acreditar quando lhe deram a notícia. Que brincadeira de mau gosto era aquela?  Guiomar estava bem antes de sair. Até se levantara mais cedo.

Só acreditou quando viu seu corpo caído no chão. Pensou que fosse enlouquecer.

O apoio do irmão não o consolava. Pensou em acabar com sua vida ali também, mas se morresse agora, o que aconteceria com a pobre filha deficiente mental?

Com certeza Zezinho seria logo adotado, pois era uma criança normal. Mas, e Fátima? Quem cuidaria dela?

 Nem os próprios irmãos tinham paciência com ela, quanto mais um estranho.

Guiomar havia falado que preferia morrer ali que voltar para o interior. Teria sido um castigo? Não, não podia ser.

Lembrou-se então de que dias atrás ela havia se queixado de uma estranha dor no peito, mas não levara a sério e o caso fora esquecido.

E se ela já estivesse doente e quisesse esconder dele a verdade? Será que já havia sentido outras dores antes?  Perguntava-se sem parar.

Depois do funeral decidiu que nada mais o prenderia àquela cidade de falsas ilusões.

O irmão não o convenceria mais. E como os filhos haviam feito, também fez. Voltou para o interior. Alugou uma casinha e com a ajuda dos filhos foi levando uma vidinha de “dono de casa” e babá dos filhos pequenos. Plantou uma horta nos fundos da casa e com ela também foi sobrevivendo.

O tempo passou e os dois filhos cresceram. Zezinho arrumou um emprego de cobrador de ônibus, uma namorada e logo estava casado e morando na casa dos sogros.

Fátima ficou sozinha. Suas crises começaram a se tornar mais violentas e um dia adoeceu de vez.

Foi internada num hospital público para doentes mentais. Os vizinhos lhe garantiram que era um bom hospital e que a filha seria tratada com todo carinho, pois o pessoal de lá era especializado no tratamento de deficientes mentais e epiléticos. José ficou tranqüilo.

Um mês depois foi visitá-la. Disseram-lhe que ela estava no pátio descansando. Encaminhou-se pra lá, feliz. Talvez até já estivesse curada.

De longe viu alguém deitado no cimento frio. Deitado? Não. Jogado no cimento frio. Teve muita pena e se aproximou para ajudar. Não! Não podia ser! Sua filha??? Era. Jogada ali como um trapo.  Então era aquilo que eles chamavam de “descansando”? Teve vontade de gritar e sair destruindo tudo à sua frente, mas se conteve.

Olhou para a filha, com o coração cheio de dor. Levantou-a delicadamente, colocou sua cabeça em seu colo e começou a acariciar seus cabelos emaranhados. De repente seu colo foi ficando escuro. O que seria aquilo? Piolhos??? Sim, e caindo aos montes.

Olhou para os lados, mas o pátio estava deserto.

Então era assim que sua filha estava sendo tratada? Como um cão sarnento? Pior. Muito pior.

Como iriam explicar aquele enxame de piolhos na cabeça de sua filha? Como iriam explicar aquele abandono? Como iriam explicar aquele estado lastimável?

Não explicaram. Disseram apenas:

- Sinto muito, Seo Zé, sua filha não tem cura.

“Seo Zé”... “Seo Zé”.... O que poderia fazer alguém que era apenas “Seo Zé”?

Não conseguiu abrir a boca. Tirou a filha dali e se encaminhou para outro hospital. Ela não podia morrer naquelas condições. Não podia.

Perguntaram de onde ela vinha e ele contou toda a história. Uma sindicância foi aberta e aquele hospital fechado para sempre.

Sentiu-se vingado. Agora ela seria bem cuidada, tinha certeza. E foi.

Dentro de poucos dias estava de novo em casa. Passou a viver só em função daquela filha.

Alguns meses se passaram e nova reviravolta em sua vida. A vizinha, proprietária da casa onde morava, disse-lhe que não poderia continuar morando ali porque a filha ia se casar e precisava da casa.

E agora, José? Pra onde você vai? – a pergunta martelava sua mente.

Outra vizinha que acompanhava de perto todo seu drama, condoeu-se dele e decidiu que faria alguma coisa para ajudá-lo.

- Seo José, fiquei sabendo que uma mulher muito rica morreu, que não tem nenhum herdeiro e deixou toda sua fortuna para ser repartida entre os pobres. Os padres da igreja matriz ficaram encarregados disso. Vamos lá conversar com eles. Tenho certeza que vão ajudá-lo.

- Mas eu nem sou católico. – disse timidamente.

- Não tem problema. Vamos lá.

E lá foram eles. Chegando à igreja, foi para um canto e ficou observando de longe a vizinha que, gesticulando muito, conversava com os padres. Viu-os olhar para ele quando ela apontou em sua direção. Não conseguia ouvir o que falavam, mas sentia que falavam sobre ele.

No dia seguinte, dois homens vestidos com roupas comuns, apareceram em sua casa, conversaram com ele durante alguns minutos e depois foram embora.

Uma semana depois os mesmos homens voltaram, entregaram-lhe uma caixa de sapatos fechada e disseram:

- Isto é para o senhor.

- Muito obrigado. Entrem!

- Não podemos. Temos pressa.

E, virando a esquina, desapareceram para sempre.

Pensou que fosse um par de sapatos, mas a caixa estava um pouco pesada para ser apenas um par de sapatos. O que teria ali dentro?

Abriu-a e empalideceu. Dinheiro??? Era.

Estaria sonhando? Não. Tudo era real. As cédulas estavam bem arrumadinhas como se tivessem acabado de sair do banco. Com as mãos trêmulas contou uma por uma: trinta e oito mil reais.

Colocou a caixa numa sacola e foi procurar o filho Zezinho. Contou pro filho o que tinha acontecido. O filho acreditou num milagre.

- Pai, foi Deus quem mandou dois anjos lhe trazer esse dinheiro. Tem um homem aqui perto que está vendendo uma casa e essa é a importância exata que ele quer. Vamos lá falar com ele.

Saíram apressados. Aquele dinheiro todo não podia ficar com eles por muito tempo.

Podiam ser assaltados. Encontraram o homem que procuravam, saindo de casa. Foram a um tabelião e, nos termos da lei, foi lavrada a venda e compra da casa.

O problema da casa estava resolvido. Agora ele tinha mais tranqüilidade para cuidar da filha. Mais uma vez plantou uma horta no quintal e com ela foi sobrevivendo. E o tempo continuou passando...

Um dia Fátima caiu doente para nunca mais se levantar. Morreu como morre um passarinho.

Os filhos respiraram aliviados. Felizmente ela morrera primeiro que o pai. Tinham medo de que ele morresse primeiro deixando-lhes Fátima como herança.

E o tempo continuou correndo... Com muito trabalho cada filho fez sua própria casa e com muito trabalho também iam sobrevivendo. Ele, agora aposentado por idade, com os frutos de sua horta sobrevivia sem ser “pesado” para nenhum filho. Podia morrer de cabeça erguida.

Sempre se perguntava quem seriam aqueles dois desconhecidos que havia lhe dado todo aquele dinheiro.

 Jamais soube, mas tinha certeza de que Deus os conhecia bem.


    Do Livro: "Denúncias Poéticas, Contos e Crônicas" - Pág. 72