O autógrafo

(Da série O Menino das Letras)

Depois do fatídico dia em que o escritor faleceu, o pequeno André vasculhou a biblioteca do pai à procura de livros que o ancestral português escrevera. Encontrou dois, por sinal, com nomes estranhos, como estranho parecia ser o autor: “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Ensaio sobre a cegueira”.

Andrezinho pensou: afinal, o senhor amargo – lembre-se o leitor que o garoto chamava assim o velho escritor, numa espécie de intimidade concedida unilateralmente pelo menino das letras; o velho, seja lá onde estivesse, quem sabe acertando suas diferenças com Deus, de quem ele sempre discordara, não se oporia à ousadia de Andrezinho – então, o escritor era religioso? Seu pai assegurava-lhe que não, o senhor amargo era ateu, ou seja, aquele que não acredita em Deus, segundo pesquisa rápida do menino escritor... bem, vocês sabem onde! Ou, então, era médico de cego, oftalmologista, o pai ajudou, para escrever com conhecimento de causa sobre cegueira!

Mas, o que o atraiu mais do que os títulos dos livros foi um rabisco com o nome do escritor na primeira página do “Ensaio”: uma assinatura! O pai explicou ao menino que se tratava de um autógrafo que tivera a felicidade de obter do autor ao vivo, por ocasião de uma de suas vindas ao Brasil.

Ora, elucubrou Andrezinho, o pai tivera a sorte de conhecer pessoalmente o parente distante. Esta era uma experiência que ele jamais teria, vez que o senhor amargo fora desta para outra melhor, como dizia seu pai. Sentiu uma ponta de nostalgia por algo que nunca viria a ter.

Dia seguinte, Andrezinho foi fazer um dos passeios preferidos com seu pai: ir à Livraria do bairro e fuçar em todas as estantes. Era ali que o menino escritor descobria todos os gêneros de leitura, um excitante mundo de aventura. Nunca saía de mãos vazias: além do desbravamento do abrir e fechar livros, o pai sempre lhe comprava um livro que despertasse o seu interesse. Foi então que o menino, olhos estatelados, notou uma grande mesa disposta com todos os livros do senhor amargo. Fascínio puro, outros tantos nomes esdrúxulos – o leitor pode achar que a palavra “esdrúxula” é muito erudita para Andrezinho mas, lembre-se, trata-se do menino das letras que não perde a oportunidade de mostrar seus conhecimentos!

Na beirada da estante, percebeu um retrato do escritor em preto e branco, encimado pela frase “Saudade não tem remédio” e, ao lado, “1922-2010”. Primeiro, a frase, que supôs ser uma das preferidas do escritor, tocou-lhe a alma, ali onde ele sentira o sentimento nostálgico de nunca vir a conhecer pessoalmente o ancestral; segundo, fez as contas rapidamente e constatou que o senhor amargo morrera com 88 anos, tempo pra caraça na mente do garoto, embora certamente fugaz para o velho morto. E, abaixo, o mesmo nome rabiscado, igualzinho ao que vira no livro do pai.

O menino dirige-se ao vendedor:

– Por favor, quanto custa?

– Qual deles?

– Este, apontando para o retrato.

– Não, este não está à venda, é da editora, apenas chama a atenção para os livros.

– Mas eu quero comprar, quer dizer, peço pro meu pai comprar...

– Não dá! Temos que devolver para a editora.

O vendedor afasta-se para atender outro cliente, deixando um Andrezinho atônito, com uma enorme frustração tomando conta de sua alma. Jamais se encontraria pessoalmente com o senhor amargo para obter o seu nome rabiscado e a oportunidade de consegui-lo acabava de escapar-lhe!

Uma raiva incontida transformou-se em súbita ousadia e se apossou do garoto. Olhou para os lados e percebendo-se desapercebido pelas pessoas que estavam ao redor, tomou o mostruário com a foto, a frase, a data do nascimento e da morte, e a assinatura do escritor, levantou a blusa, enfiou o ainda quase furto na cintura, baixou a blusa, convencido da experiência única de transgressão perpretada, mas com a alma lavada. Dirigiu-se ao pai: – Pai, cansei de ver os livros, te espero na sorveteria.