O CASARÃO

O casarão imponente apesar de não mais existir, ainda persiste nítido em minhas lembranças. Nelas, vejo-o quase real, entre ruas de terra e poucas casas à sua volta. De frente para ele ainda um vasto cerrado que seguia a rua principal. Ele fora um quase pioneiro dos cerrados que o circundavam. Da esquina dessa rua ainda quase por desbravar ele velava a cidade. Parecia que era o dono de tudo a sua volta. Os que passavam pelas ruas empinavam-se para admirá-lo. Talvez por ser o único diferente naquela rua. E talvez, por ser o único, se sentisse no direito de sobrepor-se às demais residências. Não porque assim quisesse, mas porque assim o fizeram. Alto e grandioso.

Enquanto velava a rua com sua imponência, assistiu a paisagem a sua volta mudar radicalmente numa velocidade que contrastava com sua quietude que parara no tempo. Viu o asfalto cobrir as ruas largas e o cerradão ser invadindo pelas construções. Depois se espremeu entre as casas modernas que lhe acanhavam, sem, no entanto, tirar-lhe a altivez. Mas sua presença já não fazia parte do mundo que girava a órbita do desenvolvimento e viu-se tristemente destruído para dar lugar a uma construção que valorizava o cenário. Já não era nada mais que um traste corroído pelo tempo e que destoava com a paisagem mais moderna que avançava.

Muito tempo se passou desde que o fizeram pó, mas ainda vejo suas sombras pousadas no lugar que lhe pertenceu. Nada vai apagar de minha lembrança toda a sua história e todo o seu esplendor. E o vejo ainda... Seu estilo bem rústico, talvez o barroco, não sei bem, visto que não entendo de arquitetura; as paredes pintadas de azuis, um azul-turquesa não muito forte que contrastava com o rosa forte das janelas e portas. O contraste era gritante e parecia um tom meio estranho para se pintar uma residência. Entretanto, a breguice do contraste não lhe tirava a beleza e a imponência. Talvez o deixasse ainda mais majestoso e diferente. As janelas enormes, quando se abriam, pareciam querer abraçar a rua e as pessoas que transitavam por ali. Uma escada levava ao alpendre, a única parte do casarão com ares modernos.

Ah! O alpendre! Seu piso formado por mosaicos negros e beges dava-lhe uma beleza mais moderna em contraste com o piso de madeira de todo o resto e ainda serviu de cantinho para jovens namorados, altas horas da noite. Muitas vezes ouvi os arrulhos dos namorados, como pombos nas beiradas dos telhados. Eram jovens que estudavam no ginásio, o único da cidade, e ficava do outro lado da rua. Esgueiravam-se como fugitivos por entre as sombras e escondiam-se no alpendre para trocar carícias. O alpendre era também uma arquibancada disputada nos desfiles de sete de setembro. Ali, as pessoas se acotovelavam para ter um melhor ângulo do belo espetáculo. Estudantes de rostos sorridentes desciam a rua marchando ao som da fanfarra que liderava garbosa aquela fileira interminável de jovens patriotas. Entre eles, meu primo (que morrera tragicamente em um acidente de carro há vinte anos e que levara cinco pessoas e duas que ainda iriam nascer), liderava a fila do centro na ala da fanfarra. Ele se sobressaia, alto e loiro. Ainda me lembro como se fosse real, seus olhos azuis, seu sorriso, enquanto marcava o ritmo em um bumbo que quase encostava ao chão. Muitas vezes, ainda garotinha, eu presenciei esses momentos do alpendre do casarão. Não entendia muito o sentido de tudo aquilo, mas sei que ficava extasiada com tanta beleza e até hoje parece que ouço o eco ensurdecedor da fanfarra ecoando ritmada. Mas vamos ao casarão...

Ao lado da escada do alpendre crescia um pé de manacá com flores azuis e brancas. Era bem alto e quase encobria as janelas de frente que também se abriam em duas partes abraçando a rua ou buscando o ar puro que ainda se tinha o prazer de respirar. Nunca me trouxe muita emoção o pé de manacá, embora belo e disposto a amenizar o ar feudal que emanava de todos os detalhes que fizeram único o velho casarão. A delicadeza e simplicidade das flores as faziam belas, mas eu menina ainda, admirava mais a construção imponente do velho casarão. Mas deixemos aí as florinhas para que as lembranças as levem com o vento e entremos na imponente residência que durante anos foi o lar de meus avós paternos e a sua prole tão grande.

Abre-se a porta de frente em duas partes para dar entrada a primeira sala. Era pequena, a sala de visitas. Talvez o menor cômodo do casarão. Uma única mesa com cadeiras fazia parte da mobília dessa sala e talvez a única lembrança que ainda resta desse casarão, na foto de meu irmão caçula, onde ele despojara suas gordurinhas de seis meses na mais bela foto de bebê que eu já vi. Há! Menti... Ou me esqueci por instantes... Há ainda o alicerce do alpendre como fundo de uma foto, onde uma escadinha de crianças posou também para a única foto que me lembra a minha infância. E ainda uma velha cômoda estilo penteadeira do quarto de meus avós que hoje tem a posse de meus pais. Talvez reste ainda em algum lugar os quadros que eu mais admirava e que ornamentavam aquelas paredes tão altas... Quase ficava na ponta dos pés para admirar aqueles retratos. Às vezes ficava horas a admirá-los. Gostava de ficar olhando os detalhes, desvendando-lhe as histórias ocultas. Não compreendia ainda a inteligência e a sensibilidade humana que captava tão bem as feições através de um pincel e dava vida aos retratos. Como o quadro de meu bisavô que pouco conheci. Era belo... Tinha um ar angelical, embora suas histórias tenham outra versão longe de serem angelicais. Estava mais para coronel que resolvia suas questões à bala, quando suas vontades eram contrariadas. Isso me fascinava. Depois tinha o quadro que retratava toda família de meu pai. Apenas os rostos naquele espaço oval que tantas vezes fiquei a admirar. A sensibilidade que eu ainda não conhecia, mas fazia parte de mim, me fazia ficar durante horas a admirar também um simples quadro de Santa Joana D’Arc. Eu conhecia-lhe a história e a sua coragem e me perdia buscando detalhes que revelassem seu ato heróico. Envolvia-me, enfim, neste mundo de arte que eu não conhecia, mas admirava apesar de ser ainda tão criança.

Mas voltemos ao casarão... E deixemos esta pequena sala, embora relutante, para entrar na segunda sala. Esta bem grande, e como se fosse o centro de todo o casarão, dela abriam-se várias portas para os quartos e uma única janela de onde se via a rampa que descia da cozinha e a entrada do porão que ficava abaixo de piso. Em todos esses aposentos o piso era de assoalho já bem gasto pelo tempo dando a tonalidade cinza de madeira seca. Nesta sala enorme presenciei a festa de noivado e casamento de minha tia e nunca esqueci Padre Paulo liderando uma roda de samba com um afoxé de contas de lágrimas. Já mocinha, passei o mais inesquecível Natal de minha vida nesta sala. A família estava toda reunida (avós, pais, tios e primos...). Nessa época corria solta a onda da “Música disco” (um estilo musical e de dança criado no início dos anos 70 também conhecida em inglês como disco music ou em francês discothèque). Usávamos mais o termo discothéque e só mais tarde descobri que se tratava de músicas tocadas em disco em vez de Bandas ao vivo nas casas noturnas e boates. Pois varamos a noite neste ritmo nesta sala de tantas recordações. Até os mais velhos e tímidos aderiram à onda da discothéque. Entre risos e bebidas...

Desligo-me da música que ainda parece vibrar em cada canto desta sala, como se estivesse impregnada no ar, e meu olhar se dirige para as portas entreabertas dos quartos. Guardo poucas lembranças desses aposentos, pois cada um tinha a particularidade de quem os habitara. Mas não poderia deixar de entrar naquele maior, onde minha lembrança demorou à procura dos indícios que o fizeram o mais marcante. Talvez o choro de um bebê ou um gemido misturado a lágrimas de alegria. A razão de sua importância? Bem sublime. Fora palco de muitas vidas que vieram ao mundo. Muitos primos meus nasceram ali, quatro de meus irmãos e eu. Quer razão mais especial que essa? Um aposento que viu a agonia de um parto silencioso, entre lágrimas de felicidade e uma vida que coloria o mundo em madrugadas frias ou noites de chuva e vésperas de Natal... Apenas o choro do bebê denunciava o silêncio aos vizinhos que no dia seguinte vinham conhecer o mais novo habitante do planeta terra. E a minha avó que corria a preparar a canja de galinha tão cobiçada pelos netos, cujo quinhão era apenas algum pedacinho que comiam participando da ceia da vida. E minha avó se desdobrava ainda em lavar as minúsculas e alvas roupinhas que colocava a secar no varal e balançavam ao vento inebriando à volta com o perfume róseo de bebê. E ainda corria às vizinhas para colher raminhos de funcho e preparar o tradicional chá que acalmava bebês chorões. Como um ser tão pequeno movimenta um exército tão grande e seu nascimento cria laços tão misteriosos com um velho casarão? Nunca compreendi. Relutante me afastei dessas lembranças, inebriada pelo perfume angelical e as feições doces de bebês que dormiam. Fecho a porta atrás de mim e ando devagar através da sala com medo de que o barulho de minhas lembranças faça as tábuas rangerem sob meus pés.

Minha lembrança me guiou a uma porta maior do que todas as outras e que se abria para a cozinha para onde se descia através de uma escada. A cozinha era bem maior que a sala. Era praticamente o lugar mais habitado do casarão. Ali além de se fartar da comida caseira de minha avó, passavam-se horas a conversar, sentindo o calor da família e do fogo que estava sempre a crepitar no fogão de lenhas. Diferente do restante do casarão, o piso ali era de cimento na cor natural e contrastava com a cor vermelha do fogão de lenhas e a mobília gasta e escura de uma cristaleira e uma mesa com suas cadeiras. Tudo muito rústico e simples. Duas janelas se abriam para o quintal. O quintal... Onde muitas vezes, eu, meus irmãos e os primos íamos brincar na velha amoreira e colher seus frutos. Estranho como uma amoreira pode ser tão especial na vida de uma criança. Lembro-me... Era bem pequena e estava lá, brincando na amoreira, quando ouvi o choro de um bebê. Era o choro de uma de minhas irmãs que nascia em um dos quartos de velho casarão. Lembro-me bem desse momento.

Mas voltemos à cozinha, objeto de minha lembrança neste momento e paremos defronte uma de suas três portas. Uma delas se abria para uma despensa onde se guardavam mantimentos e interligava uma pequena venda, onde meu avô, jovem ainda, mas já tão curvado por problemas de saúde, passava os dias exercendo o ofício de vender, inclusive os doces de leite e amendoim que minha avó fazia todos os dias. Da segunda porta saía-se para uma varanda escura, onde ficava um pequeno banheiro e uma cisterna de onde se pegava água. Não me recordo se ainda era usada. Provavelmente não. Uma vez que me lembro vagamente de uma pia na cozinha e um tanque no quintal. Essa varanda dava para o quintal. O mesmo onde ficavam a amoreira e também algumas laranjeiras, goiabeiras e um pé de figo. Esse era o território preferido de todos os netos e onde se faziam as maiores travessuras.

A terceira porta da cozinha se abria em uma rampa ladeada de vasos de folhagens. Lembro-me mais do antúrio com folhas bem grandes. Era o mais bonito. Suas folhas pareciam querer tocar os pés dos que desciam pela rampa que levava ao portão que se abria para a rua. Ao lado da mesma rampa abria-se a porta do porão (aquele que ficava embaixo da sala enorme). Ficava sempre aberta qual um túnel negro e cheio de mistérios. Eu tinha certo receio de descer a rampa e olhar para dentro dele. Era bem escuro lá dentro e poucas vezes ia lá. Apenas na companhia de alguém mais velho, garantindo a segurança de não ser atacada por monstros ilusionistas. Mas a palavra porão em si, até hoje, ainda me dá uma sensação de algo misterioso e sinistro. Talvez por ser escuro e solitário, usado apenas para entulhar coisas que já não nos servem mais. No velho casarão, o porão era o depósito de lenhas e tinha um ar bem assustador. Parecia que queria nos engolir ao descermos a rampa. Eu sempre apressava o passo ao passar por ali.

Houve um tempo em que meus avôs se mudaram e eu fiquei vivendo no casarão apenas com um de meus irmãos. Eu era uma adolescente nessa época e meu irmão apenas um garotinho. Quando a noite chegava, parecia que o casarão ficava ainda maior e mais antigo e me dava certo receio de andar pela casa. Era uma mistura de medo e fascinação que eu mesmo teci de tanto tentar descobrir mistérios ocultos em todos os seus detalhes belos e antigos. E segui pela vida com todos esses detalhes marcados em minha memória, apesar de não existir sequer uma fotografia como lembrança. Hoje eu o vejo sempre em sonhos. Quando isso acontece, parece bem real. Vejo nitidamente cada detalhe dos aposentos. Eu me vejo andando por eles, sentido o ranger das tábuas do assoalho sob meus pés. Sinto cada vida que passara por ali, palpitando em cada história. As que eu vivi e as que eu ouvi.

Infelizmente, o velho casarão já não existe mais. Impiedosamente o derrubaram. No seu lugar construíram uma casa moderna. Mas é como se ainda ele estivesse lá. Invisível, velando pela rua. Sempre que passo por ali, penso nele e o vejo tão imponente como antes. Parece que sinto a presença das pessoas que viveram lá e a algazarra que era naquele tempo. Estranha é a atração que o velho casarão exerce sobre mim. Como se estivéssemos ligados por laços que jamais vão se romper. Foi esse casarão que me viu nascer, e desde então, é como se ele fizesse parte de mim. Talvez essa seja a explicação para esse laço tão forte que nos une.

Não me lembro quando o destruíram, eu devia estar na fazenda. Ainda bem que não vi. Penso que a dor seria maior. Quando me dei conta, uma construção nova havia esmagado o velho casarão. Foi como alguém que se foi para sempre deste mundo e ficou apenas a dor da perda e a saudade. A dor... essa o tempo amenizou. A saudade... essa nem o tempo é capaz de amenizar. Do velho casarão, não sobrou nem ruínas, nem fotografias. Apenas a saudade e a lembrança de seus detalhes que eu tentei descrever, embora não existam palavras capazes de expressar todas as suas formas. Assim, num canto qualquer da memória, ficará ele intacto... o velho casarão.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 04/08/2010
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