ADEUS, DEUSA!
Não sou ruim, eu sei. Quando menino, participei de todas as brincadeiras, como todos em cada fase e, sem qualquer maldade, o máximo que fiz foi segurar com firmeza a perna do pintinho – presente de um tio para minha irmãzinha mais nova -, induzido por meu irmão mais velho, isso aos oito anos, nunca a imaginar que ele puxaria com tanta força a outra perninha, rasgando-o ao meio. E quando Serginho colocou álcool no urubu recém aprisionado e tocou fogo, soltando-o ao vento, eu até ri muito, mas não participei ativamente da brincadeira e depois até me arrependi a imaginar a dor do coitado, gemendo encolhido num canto, depois da queda brusca, com peito, rabo e asas totalmente chamuscados.
No mais, passei para a adolescência sem qualquer dor, trauma ou mágoa a marcar as fases muito bem curtidas da infância e o máximo que trazia para casa a sombrear o pensar, marcando o momento, eram alguns ferimentos em decorrência dos babas sempre acirrados ou quando de alguma briga com o colega mais atrevido, a vergonha estampada em forma de um olho roxo ou até os lábios partidos, a esconder de todas as maneiras da visão de um pai sistemático, para não ter a obrigação de retornar, apanhado e ainda com estômago desforrado, a descontar a parada. E quando saímos para a primeira aventura sexual com Lalai, na represa do velho Aurélio, afirmo-lhes categoricamente que nada pratiquei, mais por nojo em visualizar aquele orifício mal lavado.
E aqui, perdido em minhas divagações, busco compreender o que me levou a tomar essa decisão, se como bem mostrei, fui muito bem criado e sei da minha boa índole. E sei quantas outras mulheres gostariam de me ter como companhia, pois poucos ofertavam carinho, principalmente em ambiente público, a ponto de causar inveja todas as vezes que estávamos reunidos. E enquanto penso em tudo isso, fico só a aguardá-la, a decisão mais que remoída, tudo já premeditado, a não acatar pedido de perdão ou qualquer outro tipo de apelação.
Algo dentro de mim deixou-me frio e insensato, a neutralizar continuamente lampejos na consciência, não dando margem a nada que ousasse interferir em meus planos, tudo já bem elaborado, a respiração ofegante a denotar seu auge. E mesmo que a dor de tanto sofrer tenha se dissipado nesses mais de oito meses de separação, não voltaria atrás. Mais por saber que ela hibernava dentro de mim, a acordar a qualquer momento, em ânsias de fome. E sabia dos riscos e suas consequências. E programei tudo de tal maneira que ao imaginá-la caída, de imediato mudava o pensar, a não alterar o curso da história.
E não tem como voltar atrás. A endeusei de tal maneira que não consigo enxergar um dia a mais sequer, longe dela. Meus limites estão em frangalhos e meu coração, por demais envenenado. E de minha mente restou em lucidez somente um mapa, a posicionar meus passos após o primeiro ato. Nem pensem que sou assim vil e ardiloso, quando dispensei apoio moral ou intelectual ao plano. Simplesmente não cabia ninguém, visto que a decisão não era de vingança ou crueldade, mas de paz. E enfim, o corvo crocita e evapora-se no cinza do dia. Ela está chegando! E nem eu sei mais qual será o próximo ato...