O Último Nascer Do Sol

Alice segurou com força as botas de montaria e desceu correndo a enorme escadaria. “É hoje que eu atravesso o riacho” pensou ela. Atravessar o riacho da casa de campo era o grande sonho da garota. Na verdade, o riacho era um pouco longe, mas isso não importava para Alice. Ela passava as férias de verão na grande casa de campo desde os 5 anos de idade, mas nunca seus pais a haviam deixado atravessar o riacho. Hoje ela realizaria esse sonho com a ajuda da amiga, que fez ao longo dos anos que passara as férias ali.

“Meu último nascer do sol, provavelmente” pensava Victoria enquanto observava o belo dia começando, empoleirada no muro da varanda de sua casa. A consulta da semana anterior havia deixado Victoria realmente preocupada, mas ninguém, além do médico e ela, sabia da grave doença da garota. “Você não vem?!” gritou Alice e quanto se aproximava da casa de Victoria. Alice estava em seu cavalo, Breno, com seu chapéu e uma mochila marrom nas costas. “Pra que tanta pressa, Alice?! O riacho não vai sumir se chegarmos 5 minutos depois. Já estou indo, só vou buscar me...” Um grito ecoou pela casa. Victoria estava paralisada. Ela, mesmo vivendo todos esses anos no campo, tinha muito medo de cobras. A cobra, branca com listras pretas e vermelhas, estava à 5 metros de distância de Victoria. “Socorro! Uma cobra! Alguém poderia matar esse bicho?!” “Calma Victoria, é apenas uma cob...” “Apenas um cobra?! Apenas?! Eu odeio cobras!” Alice então, pegou a espingarda que estava encostada na parede e atirou. “Pronto. Agora vamos, eu não vejo a hora de chegarmos no riacho.”

Depois de duas horas galopando por entre as matas e plantações, Alice avistou a montanha na qual o riacho se localizava. “Ali! Só mais alguns minutos” “Credo! Esse riacho nunca parecia tão longe das outras vezes.” “Ah que nada, já estamos chegando.” “Olha, uma laranjeira! Vamos parar para pegar algumas frutas. Estou cansada.” “Tudo bem, mas rápido.” As garotas desceram dos cavalos, que pareciam estar felizes com a grama verde que tinham em frente. Elas colhiam laranjas e Alice começou a falar. “Sabe, às vezes eu penso em morar aqui. Eu sei que é longe da cidade, mas depois que eu terminar a escola, poderia me mudar.” “Seria ótimo para você. Só que seus pais não concordariam, eles querem ver você sendo uma grande empresária.” “Esse é o único problema, mas eu não gosto da cidade. E aqui é minha verdadeira casa. Vir aqui só nas férias não basta.” “Você diz isso porque não mora aqui. Não que eu não goste, mas é muito monótono. Eu passo o dia todo praticamente sozinha, agora que meus pais trabalhando na cidade.” “Por isso seria bom eu morar aqui! Você teria companhia!” Ela estava animada. “Alice, não é só isso. Tem muitas coisas mais no que pensar. A vida as vezes nos dá golpes os quais são difíceis de aceitar, mas fazer o que. É a vida.” Alice achou estranha a reação da amiga e então perguntou: “Tem alguma coisa que eu não saiba acontecendo? Nós sempre nos contamos tudo e você parece preocupada com algo. Não é mais a mesma.” Alice olhava para Victoria, que olhava para sua laranja. “Victoria, você pode confiar em mim. Somos amigas.” Victoria não sabia o que responder, então disse insegura: “Eu sei que posso confiar em você, mas não é nada. Mesmo. Só estou cansada. Vamos continuar.” “Se você diz...” Elas então montaram nos cavalos e continuaram. A subida na montanha, apesar de ela não ser muito grande e íngreme, foi cansativa. Depois de dez minutos atravessando a montanha, as meninas chegaram ao riacho. “Continua lindo! Todas as vezes que vim aqui, nunca pude o atravessar.” Alice estava radiante, não totalmente por causa da notícia que teve alguns minutos atrás, por apenas poder olhar o riacho com água transparente, limpa e cristalina (deixando à mostra pedras e peixes coloridos), flores e árvores em volta e uma tranquilidade inexplicável. Ela amava aquele lugar. Do outro lado do riacho elas podiam ver, ao longe, uma enorme cachoeira que cortava ao meio uma montanha de pedras. Também viam uma estreita e velha ponte que passava por cima de um vale, ligando o sonho com a realidade. “Victoria, vamos. Olha que lindo! Não tem porque ficar aqui parada. Vem!” Victoria e seu cavalo malhado seguiam Alice e Breno, que atravessavam o riacho. Depois de alguns minutos, estavam paradas em frente à ponte. “Isso não é seguro” dizia Victoria. Alice discordava: “Claro que é seguro. É só deixarmos os cavalos aqui. A ponte nos aguenta” Alice tirou duas cordas da mochila marrom e amarrou os cavalos em uma árvore. “Eles ficam aqui, não vamos demorar.” “Não sei não, hein” “Sem perigos, agora vamos atravessar.” “Essa ponte não aguentará nós duas juntas, alias, não sei nem se aguenta um rato” “Nada a ver Victoria. Eu vou primeiro, você depois. É só se segurar, cuidar para não cair e não olhar para baixo” “Tudo bem. Vai. Cuidado!” Alice segurou as cordas nas laterais da ponte, que eram sua única proteção, e começou a andar. A ponte era realmente velha e estreita, “Mas nada perigoso” pensou ela. Depois de algum tempo de muito silêncio, Alice gritou: “Sua vez! É tranquilo, nem se preocupe!” Victoria olhava com medo, mas o deixou de lado e pisou firme. “Eu consigo. É só não olhar pra baixo por que... Ah não! Não olhe para baixo! Aqui é muito alto e esta ponte está caindo aos pedaços. Tudo bem, não olhe para baixo. Você consegue. Quase lá. Quase.” Com muita concentração, silêncio e coragem, Victória se aproximava de Alice, que esperava a amiga com uma mão estendida. “Pronto. Tudo certo. O pior já passou. Vem!” Alice começou a correr, saltando por entre as pedras. Victória fez o mesmo. Elas chegaram à cachoeira e rapidamente tiraram os sapatos e começaram a caminhar na água cristalina. As horas se passavam enquanto elas caminhavam, conversavam e conheciam o lugar. Um belíssimo lugar. Os pássaros voavam no céu azul, o cheiro de natureza predominava fortemente, havia muitas árvores com frutos diversos e a água dos riachos e cachoeiras era limpa e com vários peixes. Tudo muito bonito. Até elas lembrarem que tinham que voltar. Estava começando a escurecer e então se apressaram. Chegaram à ponte: “Se com sol já era perigoso, imagine sem!” falou Victoria, e elas atravessaram uma de cada vez. Desamarraram os cavalos, guardaram as cordas na mochila e atravessaram novamente o riacho. “Saindo do paraíso e voltando à realidade” pensou Alice. Elas estavam indo o mais rápido possível, pois sol estava se pondo. Viam ao longe um céu rosado, com sol baixo e gaivotas voando. Alice amava aquele lugar e Victoria não aguentava mais esconder seu segredo da amiga. “Alice” chamou Victoria “O que?” “Ah nada é só que... Você lembra quando falou que eu podia confiar em você? “Sim amiga. Sim. O que está acontecendo?” Elas começaram a andar bem lentamente. “Eu tenho uma grave doença, ou seja, apenas alguns dias de vida.” “O que?! Do que você está falando? Que doença Victoria?” “Leucemia. Eu tenho leucemia.” “Leucemia?! Porque você nunca me contou?” “Descobri semana passada. Quer dizer, lembra que eu sempre tive anemia?” “Sim.” “Pois então, não era anemia. É bem pior.” Alice desceu do cavalo e abraçou a amiga “Ai amiga, nem sei o que dizer...” “Não precisa dizer nada” Victoria sorriu “Eu só quero sua ajuda para aproveitar meus últimos dias.” “Victoria não fala assim! O que os seus pais disseram?” “Nada. Eles não sabem.” “O que?! Não sabem?! Porque você não contou a eles?” “Não tenho coragem. E minha mãe anda muito preocupada ultimamente e meu pa...” “Sem desculpas Victoria. Esconder uma doença é ridículo. Porque querendo ou não, você vai precisar deles em vários sentidos, principalmente se precisar de um transplante de medula óssea. Você vai contar. E hoje.” Alice montou em seu cavalo e Victoria fez o mesmo. Elas saíram em disparada. “Porque isso teve que acontecer logo comigo?! Sempre me cuidei o máximo que pude e agora estou com alguns dias de vida” Victoria pensava. “E então, seus pais estão em casa?” perguntou Alice assim que elas estavam na frente da varanda. “Já devem ter chegado sim, infelizmente.” “Qual é Victoria, eu vou te ajudar. Nós vamos contar e eles entender. Um monte de gente passa por isso e estão vivas até hoje.” “Mas essas pessoas tinham um doador de medula óssea. Eu tenho poucas chances porque não tenho irmãos.” “Isso é verdade, mas vamos dar um jeito. Tudo vai se resolver. Confie em mim.”

Elas entraram e foram jantar. “Depois do jantar a gente fala” disse Victoria a Alice. Jane, Alberto estavam sentados, de frente para Victoria e Alice, na sala da casa. “Tia Jane e Alberto, tenho uma coisa muito importante para falar relacio...” “Obrigada Alice, deixa que eu falo.” “Tudo bem” “O que aconteceu, meu amor?” “Mamãe, eu nem sei como falar. Não queria que isso fosse verdade, mas é.” “Querida, estou ficando nervosa. Fale logo.” “Há alguns meses, eu achei que tinha anemia. Fui consultar, fiz exames, mas não. Eu tenho uma doença muito pior. É horrível porque só me restam alguns dias de vida e...” Ela não conseguiu terminar a fala, pois foi interrompida por lágrimas inesperadas. “Do que você está falando? Que doença muito pior você tem?” perguntou o pai. “Tio Alberto e Tia Jane, Victoria está com leucemia.” “Oh não! Sério querida!?” A mãe abraçou a filha e não conteve o choro. “Mamãe, a única solução é um transplante de medula óssea. O que é impossível.” “Não querida, não fale assim. Vamos achar uma solução. Escute meu amor, eu e seu pai faremos o que for preciso para você se curar.” Depois de algum tempo de silêncio, Alice disse: “Preciso voltar para casa. Já esta tarde e hoje foi um dia e tanto. Tchau, amanhã vejo vocês. Victoria, vai dar tudo certo.”

Dois dias depois, Victoria estava novamente em sua varanda vendo o nascer do sol. “O nascer do sol é a parte mais linda do dia, para mim. E se torna mais bonito por, talvez, ser um dos últimos”. No dia anterior, Jane, Alberto e Alice haviam feitos exames de compatibilidade de células da medula óssea. O resultado foi negativo. Victoria sabia que em alguns dias, iria morrer. Ela então escutou os pais discutindo. “Você tem de contar a ela! É direito da nossa filha saber. Ainda mais agora!” “Jane, não é bem assim. Essa não é uma coisa fácil de dizer. Ainda mais agora.” “Você não pode simplesmente o fato de ela ter...” “De ela ter o que mamãe?” “Victoria! Meu amor, que susto você me deu! Nunca mais fa...” “O que eu não posso saber? Já chega tudo o que estou passando e vocês ainda escondem coisas de mim?! Tenho apenas alguns dias de vida, então por favor, não façam eles serem ruins.” “Eu disse Alberto. Eu disse. Agora pode ir se explicando para ela. Vamos!”

“Filha sente-se. A história é longa.” Victoria, o pai e a mãe estavam sentados na varanda, e então, Alberto começou: “Filha, você não sabe, mas antes de sua mãe e eu casarmos, eu já era casado. E por muitos anos. E ao longo desses anos eu passei por muitas experiên...” “Alberto fale logo!” “Tudo bem, tudo bem. Victoria, você tem uma irmã.” “O que?! Uma irmã?! Porque vocês nunca me falaram isso antes?” “Querida, ninguém sabia. Ontem à tarde seu pai recebeu uma ligação de uma mulher, a ex-esposa dele, e logo depois que eles se separaram, ela descobriu que estava grávida.” “Isso mesmo filha, e essa mulher, agora, quer que eu ajude a pagar a faculdade de nossa filha. Eu disse que não enviaria nenhum dinheiro sem conhecer minha filha e por isso, amanhã, ela vem aqui.” “Amanhã? Nossa! Me fale mais sob...” “Bom dia! Eu estava indo colher algumas bananas e resolvi passar para dar um ‘oi’. Nossa Victoria, que cara é essa?” Alice apareceu na varanda alegre como sempre, mas sua felicidade não alegrou aos demais. “Eu tenho uma irmã. E ela vem aqui amanhã.” “Irmã? Porque você nunca me contou?” “Ninguém sabia. Nem mesmo meu pai. Senta aqui que ele está contando. Papai, pode continuar.” “O nome dela é Carine e ela tem 19 anos. Dois anos mais velha que você. Sei apenas isso.” “Ah tudo bem. Papai eu prometo ser bem gentil e educada com ela, só que agora não é um momento muito bom para receber visi...” “Isso é perfeito! Olhe só Victoria, ela pode ser sua salvação já que, talvez, seus pais não possam doar suas medulas ósseas. Entende?” Victoria, Jane e Alberto nunca haviam pensado nisso antes e isso era óbvio. Óbvio. “Nossa! Oh querida, temos solução! Eu disse que acharíamos uma solução. Eu disse!” “Calma mamãe, isso não está confirmado ainda. Vamos esperar ela chegar.”

O dia amanheceu e, como de costume, Victoria apreciou mais uma vez o nascer do sol. “Ela já deve estar chegando” disse Alice. “Assim espero. Não aguento mais esperar.” Duas horas se passaram e elas ouviram o barulho do carro. “Ali! É ela, sua irmã! Vamos!” Alice estava mais animada que Victoria, com a ideia de a amiga ter uma irmã. Aquela não era apenas uma irmã, era uma chance única de sobreviver. Elas foram correndo ao encontro do carro vermelho, do qual saiu uma jovem ruiva e alta. E bonita. Victoria, Alice e Carine conversaram por várias horas. Até Alice dizer para Victoria: “Tudo bem, já conhecemos ela. Ela é muito legal. Agora pode falar.” “Carine, preciso falar algo.” “Certo. Pode falar.” Carine sorriu. Seus dentes eram perfeitos. “Muito bem. Lá vai. Eu tenho leucemia. Restam-me apenas algumas semanas ou dias de vida. Minha única solução é o transplante de medula óssea, porém papai e mamãe não têm medulas compatíveis. Você é minha esperança.”

Eram três horas da manhã e todos estavam sentados, ansiosos, na sala de espera do consultório. “Que demora para sair o resultado de alguns simples exames...” “Calma Victoria. O médico já deve estar vindo querida.” “Ali! O médico com os exames! Pronto!” Alice estava muito nervosa (isso podemos perceber pelo estado de suas unhas), assim como todos os outros. “O que deu nos exames? É compatível?!” O médico olhava atentamente as folhas quando seriamente falou: “Tudo seria muito simples e fácil, se não fosse o problema da compatibilidade entre as células do doador e do receptor. A chance de encontrar uma medula compatível é, em média, de uma em cem mil. Para o doador, a doação será apenas um incômodo passageiro. Para o doente, será a diferença entre a vida e a morte. Por isso, tenho a satisfação de lhes informar que as células de Carine Wanderwood são compatíveis às de nossa paciente, Victoria Solomon.” “Eu sabia! Eu sabia!” “Nossa nem acredito!” “Querido, eu disse que acharíamos uma solução. Eu disse.” Victoria não conseguia acreditar. O dia estava sendo cheio de grandes acontecimentos. Primeiro ela conhece sua irmã. E depois, essa irmã salva sua vida. Carine sempre queria ter uma irmã, era seu grande sonho, e mesmo sendo apenas meia-irmã de Victoria, estava muito feliz. Principalmente por poder ajudar a salvar a vida dela. Carine pretendia entrar na faculdade de Arquitetura e finalmente, depois de 2 anos tentando, ela conseguiu. Só não teria como pagar a moradia e isso o pai, recém conhecido, a ajudaria.

O transplante de medula óssea foi marcado para o dia seguinte, pois não havia porque esperar. Victoria não acreditava como aquilo poderia ser real e não sabia como agradecer para a irmã. Victoria, Carine e Alice passaram o resto do dia juntas: foram ao outro lado do riacho. Alice disse que era ‘inadmissível’ Carine não conhecer o belo lugar. E foi uma ótima ideia. Tirando o fato de Carine ter medo de altura. A passagem pela ponte foi terrível para ela. Assim como para a irmã. Elas chegaram cansadas em casa e contaram tudo para os pais durante o jantar. Depois foram dormir, pois o dia seguinte seria um dia e tanto. Victoria foi a primeira a acordar e como de costume, foi para a varanda. Olhar o nascer do sol. “Hoje o dia será longo” pensou ela.

Duas semanas depois, tudo corria bem. Exceto o fato de Carine não estar mais com eles (ela havia voltado à sua cidade três dias depois do transplante). A doação durou duas horas e foi retirado cerca de 15% da medula óssea de Carine. Victoria agora estava internada no hospital. Mas não por muito mais tempo. Ela não aguentava mais ficar lá mas ‘era preciso’. Porém amanhã seria seu último dia naquele lugar branco e monótono. Ela estava muito feliz por poder sair de lá e voltar para sua casa. “O campo, meus cavalos e tudo o que tenho lá terá outro valor depois que eu sair deste lugar extremamente chato” dizia a Alice pouco depois de combinarem que amanhã iriam atravessar novamente o riacho. Alice então foi embora e Victoria ficou sozinha. Como já estava tarde, ela resolveu dormir. “Para o tempo passar mais rápido”, pensou. Horas se passaram e Victoria acordou. Olhou pela janela e ficou admirando o nascer do sol. Felizmente, ela ainda veria muitos.

Beverly
Enviado por Beverly em 03/08/2010
Reeditado em 17/08/2010
Código do texto: T2416447
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