O Café da Manhã -.Lia Lúcia de Sá Leitão- REPOSTAGEM 01/08/2010
(Lia Lúcia de Sá Leitão
13/3/2008)
Caros leitores, depois de uma noite examinando os lençóis brancos e cheirosos cheios de bicos da terra, fronhas limpíssimas para o descanso das cabecinhas cheias de suores e areia das brincadeiras antes da reza. Na Capela, hora mais temida, a decisão da agenda do dia seguinte, vez por outra um morcego dava um rasante nas nossas cabeças, um grito só ecoava no átrio, imediatamente uma tia calava o assombro com um tapa nas orelhas, um belisco entre as costelas ou um olhar de matar cem. As torturas físicas não nos incomodavam. Ficavam as roxas, passavam apesar de arrancar algumas lágrimas momentâneas, o que mais doía era a tortura psicológica, “ nada de ir o açude pela manhã” , nada de ir caçar nambu (uma ave da região), nada de brincar no parquinho, nada de nada!
Rezávamos na verdade contritos para o tempo passar e cada um vestir-se para dormir, primeiro o leito doce da Ba para acalmar os ânimos, depois a mentirinha, eu tomei banho, só os anjos da guarda e a Chica, a governanta que cuidava do limpeza das camas pela manhã, eles sabiam quem era cascão.
Mesmo na hora de dormir era tudo muito engraçado, um tinha medo de fantasmas, outros do sibilar das cobras, outros dos ratos que se equilibravam nas traves da velha casa, eu ficava no time dos que ficavam admirando os pirilampos, contando quantas vezes os sapos coaxavam e grilos cantavam na madrugada, e mais desafiadora das apostas era saber quantas vezes a Tia Genoveva abria a porta para ter certeza que os santinhos estavam bem acomodados.
O sono naturalmente vencia os serventes das trelas das astúcias, adormecíamos, ai não lembro porque nunca ninguém falou como era, tenho uma vaga lembrança dos primos mijões porque tomei sopapos ao rir deles e espalhar na hora o café quem era o mijador de cama.
Ninguém acordava ninguém. As ordens eram rígidas, deixem a meninada dormir até cansar, porém, cinco horas da manhã a maioria estava de pé e todos corriam para o campo ajudar e ver Antônio ordenhar as vacas leiteiras era bom demais, leite espumando, caneco de alumínio tosco e sujo, quem estava incomodado com a limpeza? Apenas as mães que secavam a língua de tanto reclamar por causa dos pés no chão.
Depois da ordenha voltávamos rindo, saltitantes, a liberdade era um fenômeno nas nossas vidas, todos entravam pelas portas da cozinha aos abraços e beijos da Ba. Ela sentava cada um em uma cadeira estrategicamente separada para não ter brigas.
A louça bordada com o brasão do bivô que estava por toda a casa para lembrar a estirpe da casa grande, para a meninada era puro assombro, era aquele retrato do velho e eles faziam o velho não se acomodar na sepultura e vivia assombrando a casa.
As iguarias eram muitas. Arroz doce, macaxeira, iame, molho de coco para a tapioca, cuscuz amarelo seco, cucuz molhado com leite de coco, leite, sucos de pitanga, laranja, carambola, queijo assado, queijo amarelo de manteiga, ovos fritos e ovos de codornas cozidos e sem cascas, café fresquinho e queimando a língua, pão de rosca, pão de fubá, pão doce, pão de massa, delícia de sabor!
O que mais me deixava enlouquecida era a variedade de cuscuz que a Ba não poupava o saquinho da gula.
Quem não gosta de doce ? O sucesso na cozinha da casa grande no café da manhã era aqele arroz doce, hum! Sinto salivar só em pensar, o cheiro a textura, o sabor, a travessa que era consumida em instantes, o manjar de Ba e a fonte de energia daquela manhã.
Arroz Doce.
Essa receita jamais levará leite condensado, nem leite de coco, nem creme de leite, industrializados é sem dúvida a mais saborosa.
Você há de concordar que é muito simples. Copilei à risca, sem colocar nem retirar uma vírgula, bem à propósito, para que as minhas professoras e colegas do curso de gastronomia não se assustem, mas possam lembrar os alimentos saborosos são simples e milenar como o Arroz Doce, o Ovo Frito, o queijo assado, o cuscuz ao molho da galinha caipira ,quando bem feitos, ninguém esquece o próprio tempo passado fica na lembrança de todos.
Espero caro leitor que você não seja daqueles que de vez em quando pensa numa comida da sua infância ou adolescência e só uma pessoa da família sabia fazer.
Convido cada um de vocês a levantar as mangas do pijama e botar a mão na cozinha, telefonar logo cedo ao amigo mais próximo, filhos netos e convidá-los a um café da manhã na fazenda ao sabor da coznha da Ba. Vamos, mãos à obra e espere os elogios!
Arroz doce ( receita de 1886) tradicional na casa grande do Conde da Divina Graça – Pernambuco.
Ingredientes:
1 xícara de arroz, 1 litro de água, 1/2 litro de leite, 2 xícara de açúcar refinado ( esse açúcar pode ser pisado em pilão ou no liquidificador ou mesmo comprado hoje nos supermercados, obs: particular.) (ou menos se preferir menos doce ou usar caldas extras), 3 gemas, 1 pitada de sal, canela em pau, canela em pó
Preparo:
Escolha, lave e escorra o arroz. (Não use arroz palbolizado), Cozinhe o arroz na água com o sal (pitada) e a canela em pau em fogo alto. Quando a água secar quase toda, mas o arroz continuar úmido, junte o leite, o açúcar refinado e volte ao fogo com o fogo mais brando.
Mexa de vez em quando com (espátula) ou colher de pau em toda a extensão da panela, tendo o cuidado para não pegar no fundo da panela. Dissolva as gemas em um pouco de água e junte um pouco do arroz que está sendo preparado ainda quente, misture bem, e acrescente ao doce na panela. (Essa mistura faz com que a gema não se talhe ao entrar em contato com o calor.) Misture bem para ficar homogêneo. Retire do fogo e coloque em tigelinhas individuais ou (em uma travessa grande.) Polvilhe com canela em pó a gosto.
Ta feito seu arroz doce à moda da casa grande do Conde da Divina Graça.
Espero que gostem porque ainda hoje eu fico babando do sabor principalmente quando depois de algum tempo deitada na rede olhando aquele mar de cana dançar pra lá e pra cá como quem ouve o Hino de Pernambuco e suas tradições, espero calmamente a hora do almoço, o tão falado almoço e suas iguarias.
A casa do Bivô dava um roteiro de filme interessante, desde as mangas roubadas pelos quintais dos moradores do avô aos reclamões, a bagunça, as rezas, as histórias de assombração da menina capenga, as cantigas de roda, caçadas, cocadas e mais brincadeiras, banhos de açude, quedas, arranhões e tudo que tem direito um grupo de crianças desesperadas por chão, mato e gente do eito.