Mula Sem Cabeça na Praça de Casa Amarela. - REPOSTAGEM - 0108/2010

Conto divertido - Lia Lúcia de Sá Leitão – 27/08/2009.

Certo dia correu um boato no Bairro de Casa Amarela, próximo ao Mercado Público, que uma Mula sem Cabeça andava galopando em plena praça da feira e assustando os freqüentadores das barracas próximas ao largo.

Os homens da noite, destemidos dos assaltos, farristas ou mesmo os bêbados tradicionais da localidade passaram a ter respeito pela alma do outro mundo que corria de um lado a outro do pátio em direção ao Bairro vizinho.

A assombração corria pelas ruas mal iluminadas com um facho de luz vermelha apontado para o chão, descia até um pequeno giradouro na estrada das Ubaias e seguia reto para Casa Forte. Todos que viram afirmaram ser uma coisa do outro mundo, numa disparada só, ninguém podia descrever o que era aquele mundo de panos, estopas e um foco de luz que parecia mais olhos de fogo alumiando em linha reta o chão de paralelepípedos e sumia na noite com seus guizos, e um forte barulho de chocalhos do tipo que se coloca nos pescoços dos animais no pasto.

O medo começou a tomar conta das mulheres da noite, as serviçais da madrugada, as acompanhantes dos homens que fugiam das suas casas para os devaneios do sexo, pague e use e até abuse da prostituição.

Ninguém via mais nada pelo largo senão um ermo, um paço mal iluminado onde os barraqueiros da feira popular evitavam a madrugada. Preferiam pousar nos carros já ultrapassados, nos pequenos espaços entre uma camioneta pingando gasolina e um corcel desbotado de cor e com os eixos arreados pelo peso da carga de bananas.

Esses homens no dia seguinte necessitavam da voz para apregoarem seus preços na feira de legumes, frutas e verduras, chegavam antecipadamente para montar suas bancada e ali, no coração do bairro, pouco se afastavam do local guardando suas mercadorias.

Alguns homens do comércio noturno das barraquinhas de pingas, sopas, macaxeira (aipim) com carde de charque (seca), cará da terra com fígado de boi ou iscas de fígado, feijão de corda e bode cozido ao molho, delicioso que não faz inveja a nenhum restaurante chique da cidade, todos ficaram preocupados com a evasão de seus mais habituais freqüentadores, aqueles feirantes.

Dias seguidos, semana, nada, nada se fazia de estranho, mas o boato da assombração corria e se espalhava como um rastilho de pólvora.

Alguns pais mais cautelosos passaram a buscar as filhas no colégio do Estado próximo a Praça, o culto da Igreja Protestante foi antecipado em duas horas, para segurança dos seus fiéis preservando-os da maldição, evitando o susto dos desavisados com a Besta Fera.

As famílias da redondeza evitavam ficar com portas abertas depois das dez horas da noite, até a guarda municipal recolhia após às 18:00 horas.

Não tinha ninguém que pudesse ficar para identificar ou dar voz de prisão àquela alma penada, a Mula sem Cabeça a mulher condenada ao inferno por ter prevaricado com Padre.

Mas que padre foi esse que criou tal desassossego para a comunidade? As beatas rezavam novenas na Igreja da Harmonia, fuxicavam entre si dos velhos e bons Padres há muito enterrados, procuravam uma mácula na honra desses homens e nada! Mas, apesar da fé seguiam os mesmos passos dos irmãos protestantes, não davam chances ao azar, saiam todas juntas e de braços dados sempre em horários mais cedo que o de costume.

A vida do Bairro tornou-se um verdadeiro pandemônio, a Polícia Civil, disse em entrevista a uma rádio local, nada podemos fazer: isso é tarefa da Polícia Militar, a Polícia Militar respondia, não podemos dar voz de prisão a um fantasma do outro mundo, o caso fica para os vigias do cemitério. Os vigias do cemitério esclareciam daqui da nossa área, nesse Campo Santo, não vimos sair nenhuma alma das sepulturas nem cruzar os portões uma assombração cuspindo fogo ao léu, que chamem o Padre, o Pastor e um Guia Espírita, o lugar tem que ser bento, orado e devidamente exorcizado para que a paz volte ao largo de Casa Amarela.

Os mais corajosos formaram uma comissão de caça ao demônio. Munidos de paus, pedras, crucifixos e água benta, ficaram a espreita daquela visagem apavorante que corria sempre numa mesma direção rumo a Casa Forte.

Ficavam às vistas, sentados jogando dominó, conversando, bebendo, mas de prontidão.

Uma noite sem lua, nem era dia de assombração bailar ou aparecer para os viventes, lá vem aquele monjolo tremendo, com um facho de luz e um relincho aterrador.

Os homens partiram ao encontro da Besta Fera, quem tinha água benta atirou os seus vidros, quem tinha pedras não fez por menos, mas os de raça mesmo cobriram a tal assombração de pauladas.

Aos gritos de dor, alguém debaixo de uma armadura de plásticos, lonas e sacos de algodão gritou abafadamente socorro. Não me matem! Tenham dó de uma pobre alma, já sou muito infeliz para agora morrer de pauladas.

Os homens num susto só se afastam, a assombração dos mil demônios cai por terra, a polícia Militar chega, acompanhada do delegado da Polícia Civil, os vigias do Campo Santo acodem e um Guarda Municipal vem tirar o serviço.

Ao descobrirem aquela montanha de tralhas, sai cabisbaixo um homem de meia idade, pequeno em tamanho porém de constituição musculosa, era um Senhor de respeito da redondeza, e todos se assustaram com aquele procedimento.

Uns diziam aos outros, mas olha só esse homem tão sério, meteu medo em todo o Bairro! O outro, mas como é que pode, uma criatura como ele se passar para tamanho destrambelhamento? Mais um retrucava, não acredito no que estou vendo, esse homem perdeu o juízo.

Um policial Militar suspendeu esse senhor de reputação ilibada no Bairro, ia algemá-lo quando o delegado interviu, calma, daqui pra frente eu assumo o caso, ele não leva algemas não, conheço a reputação desse homem, quem nunca pecou atire a primeira pedra.

Todos boquiabertos com a danação desmentida a golpes de cacetetes e pedradas.

Na delegacia, o Delegado, com um olhar entre comiseração e curiosidade. Fala para aquele homem humilhado diante dos pares de olhos que exigiam uma explicação, só explique uma coisa, porque o Senhor fez isso tudo?

O homem numa voz sumida, explicou tenho uma amante na Estrada das Ubaias bem ali no finalzinho do trevo, ela exigiu que eu a visitasse em dias certos e não tinha outra forma de despistar os vizinhos e a minha família. Aproveitei a história popular para que todos se recolhessem mais cedo e eu pudesse passar sem sobressaltos.

Lia Lúcia de Sá Leitão
Enviado por Lia Lúcia de Sá Leitão em 01/08/2010
Código do texto: T2412969
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