RECIFE

O ônibus balançava o tempo todo. A estrada, cheia de buracos, era de terra batida e a poeira dos carros a frente fazia uma grande nuvem escura. Era preciso diminuir a velocidade para enxergar o caminho. A vegetação, se é que se pode chamar aquele monte de galho seco de vegetação, assustava os passageiros que, distraídos, acabavam olhando pela janela. E o calor? Meu Deus, como era quente! A roupa molhada de suor grudava no corpo junto com a terra que subia com a passagem de outros carros. Alguns dos poucos passageiros cometiam o ato de desespero de tirar a camisa. O que para muita gente era uma grande falta de educação, principalmente para nordestinos de interior que moravam em um inferno, às vezes achava-se que Deus havia esquecido àquelas terras rachadas que choravam e se abriam ao contato do sol imponente e impiedoso. O cansaço e a má alimentação ajudavam toda a indisposição de ânimo. Todos ficavam afundados em suas cadeiras duras com as pernas sempre para baixo atrapalhando assim o mínimo de circulação necessária para evitar o inchaço dos pés. Quando à noite chegava trazia consigo o alívio de não sentir mais o calor. Mas o alívio era só esse, pois ônibus depois de tanto chão mostrava sinais de cansaço. De trinta em trinta minutos, dentro daquela escuridão de fim de mundo, o veículo quebrava e todos precisavam descer para empurrar. Com exceção das crianças, é claro. Essas passavam o dia sonolentas por causa da quentura e de noite faziam festa. Corriam para cima e para baixo, gritando, cantando e rindo de tudo e de todos. Aos pouquinhos a exaustão ia chegando e fazendo a algazarra diminuir. Uma se escorava primeiro, depois as demais começavam a coçar os olhinhos e a dar grandes bocejos. Esse “grande” nada mais é que um pequeno e delicado bocejo. Então quando cada uma ia para o colo das respectivas mães é que os adultos podiam dormir, até que o veículo quebrava e toda a agitação se iniciava novamente.

Depois de dois dias de viagem o ônibus chegou finalmente a seu destino. Severino, esse é o nome do passageiro que me disponho a expor a alma, não conseguia esconder a felicidade e o espanto. Repetia para si bem baixinho como se não quisesse esquecer onde estava ou para convencer a si próprio: Ricife, Ricife, Ricife. Já não agüentava mais esperar, ficavam dando voltas e nada, nada de parar. Quando chegou na rodoviária já não repetia o nome da cidade, talvez a língua estivesse seca. Se encontrava agora de pé com a mala antiga numa mão e a outra preocupava-se em arrumar os cabelos que estavam mais ouriçados do que o de costume. Só desceu depois de achar-se apresentável. E precisava encontrar um guarda pois escutou alguém dizer em algum lugar, não se lembrava mais, que informação segura se pede a policial. Enquanto procurava alguma ajuda, o lugar lhe saltava aos olhos. Era tão bonito, cheio de gente e lojinhas e lanchonetes e até um cinema. Nunca tinha entrado nesse tal de cinema. Sabia que era uma sala com televisão tamanho gigante que passava umas pessoas que vestiam roupas escandalosas e fumavam cigarros também gigantes. E vendo tudo isso, começava a se orgulhar pela escolha. Muitos amigos sugeriram São Paulo, mas como não era religioso ficou com medo de uma repreensão por parte do santo e não foi. Não, estava certo, Recife era o melhor lugar. E ainda por cima tinha água, muita água.

O guarda estava encostado numa pilastra fumando um cigarro e Severino adiantando-se perguntou como fazia para chegar ao mar. O homem mandou-o a Boa Viagem, imaginou que o pobre diabo tinha parente rico por lá. Explicou que teria que pegar o metrô e depois o ônibus. Metrô? Meu Deus, não conseguia se imaginar andando embaixo da terra, isso para ele era coisa de minhoca. Bom, se esse era um indício de ser moderno, fazer o quê?

A Estação do Metrô estava um pouco vazia e os presentes logo deram fé de Severino. Outros aspectos também chamavam a atenção além de sua cara espantada. As pessoas queriam o externo, ninguém se importava com coração, espírito e alma. E o externo desse homem trazia uma mala desbotada e a roupa de tecido barato, que sem dúvida nenhuma era seu traje de festa. O corpo se mostrava franzino e no rosto tinha uma expressão sofrida que não se escondia atrás da pele excessivamente queimada de sol. Quando o temido minhocão chegou ele, seguindo os passos das pessoas, entrou rapidamente e sentou-se quietinho colocando a mala no chão ao seu lado. Mas antes de fazer isso deu uma boa olhada para ver se o lugar estava limpo. Tinha mania de limpeza embora para os outros sua aparência encardida desse a impressão de sujeira. Depois de olhar o ambiente do teto ao chão e as pessoas que estavam no mesmo vagão, começou a reparar na paisagem. E vendo o que via, enchia-se de estupefação. Recife sem dúvida era muito bonita mas também usava a máscara escura, existia a pobreza que tanto era comum a seus olhos. Em que ele trabalharia naquela cidade? Datilografar não sabia e computador então, nem existia. O pouco que lia e escrevia aprendeu com muito custo. Precisava caminhar muito até chegar à escola e a única professora se aperriava com a falta de verba. Chegou mesmo o tempo que não havia mais merenda nem um material didático decente. Então ela decepcionada com a situação fechou a escola, que funcionava num galpão, e enclausurou a sim própria dentro de casa. Era viúva há muito, nunca pudera ter filhos e depois de um ano morreu sozinha. Foi encontrada em sua cama com o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis. Severino quando soube da morte ficou numa consternação de dar dó. Mesmo antes da escola ser fechada ele sentia saudade da mulher inteligente que tanto admirava e sempre que podia ia visitá-la. Mas era matuto demais, morria de vergonha de gente. Ficava escondido atrás de uma cerca até que a mestra aparecia. Quando dava sorte disso acontecer, ele sorria com carinho e ia embora ajudar o pai nos afazeres de homem. Por esse motivo só fez até a 4ª série primária, pois na cidade Dona Romilda era a única que se interessava pela educação daquelas crianças esquecidas pela grande Pátria Mãe Gentil.

Desceu em plena avenida Boa Viagem. Os prédios sofisticados e bem maiores que as poucas árvores que conhecia o faiscavam. Muitos carros passavam apressados e logo adiante eram obrigados a parar no sinal vermelho. Na sua cidade não tinha sinal vermelho nem muito menos o amarelo e o verde. Achava engraçado a cara feia que os motoristas faziam no vermelho e a felicidade e alívio no sinal verde. E nesse instante foi tomado por um enorme desejo que não conseguiu conter. Foi até o sinal e ficou na faixa de pedestre, que ele acabou achando um desenho muito sem graça para enfeitar a rua, e quando viu o verde ergueu a cabeça, suspendeu a mala de cima do pé e atravessou a rua orgulhosamente sentindo-se poderoso e livre. A sensação era tão grandiosa que ele não percebeu quando o sinal abriu. O carro que estava a sua frente ainda foi complacente mas, como ele em seu transe andava devagar demais, o carro buzinou. Coitado! Deu um grande pulo e saiu correndo com o orgulho despedaçado. Quando se deu conta estava em frente ao mar. A tarde se mostrava calma ali e o pobre homem com o coração disparado, não se sabe se pelo susto do carro ou se pela surpresa daquela visão extraterrestre para ele, estava pasmado. Era semana de mar cheio e as pedras tão comuns nessa praia estavam encobertas por ondas brancas e agitadas. Severino, parado olhando o espetáculo, sentou-se na areia sem conseguir acreditar no que via. Era muito grande, maior do que a imagem da tela de cinema que estava formada em sua cabeça. Poucas pessoas passavam e com algumas Severino se espantou, pois estavam quase nuas. Como era estranho, não conseguia se imaginar vestido daquele jeito! Enfim, parou de pensar e levantou-se em direção ao mar. Molhou a mão e passou no rosto e depois na boca. Era salgada mesmo! Não conseguia entender como podia existir tanto sal assim para salgar tanta água.

A tarde voou rapidamente enchendo o ar de areia e agitando as ondas brancas que se desmanchavam aos pés daquele homem encantado com tanta beleza. Já não havia mais ninguém e aos poucos a luz do sol ia cedendo aos caprichos das luzes da avenida. Quando só conseguia ouvir o barulho do mar e as ondas brancas que mais pareciam fantasmas flutuando é que se deu conta da escuridão que o rodeava. Levantou-se com pressa, bateu as calças e saiu calçando os sapatos. Muitas pessoas estavam no calçadão. Umas de bicicleta, outras de patins ou caminhando, uns meninos jogando bola e Severino que, no meio das gentes, não conseguia pensar no que faria dali para frente. Estava quase chegando à frase que tinha ouvido no ônibus: “me deu um pânico danado”. A palavra “pânico” lhe agradou muito e como as mulheres que conversavam sobre isso começaram a rir, concluiu que se tratava de algo bom. Sempre gostou de palavras difíceis e tinha o hábito de anotar numa cadernetinha para não esquecer. Então escreveu: pânico = felicidade.

É, mas ele não estava preocupado com isso. Sua cabeça dava voltas sem chegar a lugar nenhum. Ficou sentado no banco olhando quem passava e foi aos poucos sendo envolvido pelo cansaço e adormeceu com a cabeça na mala. Os sonhos vieram como anjos de pele macia; nuvens que acariciavam fazendo cócegas em seu subconsciente e essa sensação era explicitada num sorriso em seus lábios finos e secos. Algumas imagens o assustariam se estivesse acordado. Eram figuras sensuais dando piruetas no ar e mexendo o corpo de tal forma que fazia com que o corpo de quem estava vendo se agitasse, suasse e respondesse na mesma sintonia. O assustariam realmente, quem diria que ele em toda sua inocência pudesse pensar nisso? Mas era ser humano, não poderia ficar isento dos instintos que muitas vezes, ou sempre, aprisionavam as almas.

Quando acordou o sol já estava alto. Mesmo embaixo do pé de castanhola, como conhecia aquela árvore mas que para muitos a árvore que dava frutinha amarela por dentro e roxinha por fora chamava-se pé de coração-de-negro, ou negro. Um só país e uma só língua mas com tantas culturas e costumes diferentes, é engraçado! Mas vamos no pé de castanhola mesmo. E até embaixo do pé de castanhola o calor já se fazia grande. Acordou meio indisposto e pensou em tomar um banho mas mudou de idéia, não queria ficar salgado como os peixes, preferiu procurar um lugar para morar. E o destino ajudou com o que vinha a frente e tinha em mãos. E ele sendo empurrado por essa força esbarrou num homem magro e alto com uma certa pinta de malandro que parecia mais dançar do que andar. Num pedido de desculpas rápido e uma informação esperançosa as peças do quebra-cabeça foram se encaixando sem muito esforço do jogador. E tudo isso parecia estar vagando no espaço, um grande tabuleiro perdido entre os planetas e pessoas gigantes sentadas sobre as peças. Era assim que Severino descrevia esse momento se tivesse a sensibilidade apurada e o dom da escrita ou da retórica. Mas o que ele na verdade sentiu foi um grande alívio, como se alguém tirasse de cima de seus ombros um saco pesado de cimento.

O barraco do “santo” de Severino ficava no fim do mundo. O contraste com a parte da cidade que ele havia conhecido a pouco era berrante. O espaço era mínimo, apenas um cômodo de uma só cama, mas teria que se virar de qualquer jeito. E foi o que aconteceu. Passou dois meses dormindo no chão e não encontrava emprego. Pagava caro pelo desconforto e praticamente já não saía mais de casa, pois o dinheiro poupado com tanto esforço na sua terra já havia acabado. Conhecia a favela inteira e não tinha mais medo de sair à noite. Mas quase não saía. O amigo depois de uns tempos começava a olhar meio de lado e do pouco diálogo de antes restavam apenas as reticências e os pontos finais. A comida um dia cessou, como era de se esperar, e a dor que essa falta trazia consumia toda e qualquer pontinha de esperança que existia. Até a fé que Severino se dizia não ter, a fome tinha comido. Aprendeu logo depois que a bondade e honestidade sucumbiam também e começava a lutar desesperadamente contra a mente, que na página passada era inocente, mas que agora queria matar o mundo para comer. Ficava trancado com medo de si próprio, só lembrava da existência do mundo quando o amigo malandro entrava com cara de quem havia comido a vida. Trazia a face sempre corada e uma sacola na mão que ele guardava no armário e trancava com uma chave pequena que ia para o bolso da calça. Um dia o “amigo”, e coloco entre aspas porque sei o que vai acontecer, chegando em casa tarde da noite, encontrou-o no chão com uma carta. Era notícia da Dona Emengarda, mãe de Severino, ou melhor, era a fome de lá passando na cara da fome de cá. O pobre, que vinha fazendo um lanche por dia graças a vizinha piedosa e evangélica, chorou uma lágrima. Uma única lágrima em três meses de agonia e decepções. Uma lágrima que fazia seu percurso em direção ao olho passando espremida por canais desconhecidos e escuros até mirrar em sua face magra e sem cor. Esse momento não durou muito pois foi interrompido pelo malandro que sem piedade nenhuma lhe impôs uma decisão. Ou fazia o que ele queria ou seria obrigado a deixar o barraco.

O resto da noite ia com passos de formiga enquanto Severino andava nervoso na calçada. As fibras do seu corpo pareciam se rasgar de medo e tensão. Como já era tarde a favela dormia no silêncio raro e tão desejado de outras noites, mas que nessa era insuportável e fazia o coração ser ouvido fora do corpo. Com certeza o malandro já deveria e fazia o coração ser ouvido fora do corpo. Com certeza o malandro já deveria estar em frente ao banco, ele e o outro amigo cheio de pinta também. A consciência estava furando a parte lateral da cabeça, enquanto a fome empurrava Severino para o local do crime e, quem sabe, da morte física moral. Tinha um revólver dentro das calças e no bolso um retrato preto e branco da mãe. Baixou a cabeça e foi andando até o ponto de ônibus, onde pegou o que ia em direção ao centro da cidade.

Não atinava bem o que tinha se passado neste tempo. O dia havia amanhecido claro e quente sem a menor alteração, apesar do pano preto que permaneceu por momentos longos encobrindo o verde da esperança na noite anterior. Mas tinha agora a barriga cheia e o corpo limpo, embora a alma estivesse cansada. Na mão esquerda trazia o jornal “Diário de Pernambuco” com as tristes notícias. Não tivera coragem, sempre fora medroso desde pequeno e até chegou uma vez a se assustar com o próprio reflexo no espelho. Não conseguiu ir, sentia saudades de seu tão conhecido mundinho. Estava novamente sozinho e agora sem sua mala pois esta havia vendido junto com o revólver na favela, que por sinal era um lugar fácil para negociar esse tipo de mercadoria. A única e fiel companhia era agora um velho conhecido seu: o ônibus.

Adriana de Castro
Enviado por Adriana de Castro em 31/07/2010
Código do texto: T2410059
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