Pirulito - O Trenzinho da Bahia

A calmaria da madrugada é interrompida pelo farfalhar das folhas nas árvores das ruas e da pracinha de Dias d'Ávila. O gorjeio dos pássaros em um balé de revoadas e à cata da refeição matinal, migalhas largadas ao chão ou outro qualquer petisco à base de pequenos insetos ou frutas das chácaras vizinhas.

Meu destino soma-se ao das outras pessoas que se dirigem à estação ferroviária para tomarmos a pequena composição, de no máximo quatro

vagões de passageiros, com destino à Salvador.

A caminhada é calma pois, temos tempo e ainda não são 06:20, horário em que chega o velho e agora saudoso 'Pirulito', que já vem lotado desde Alagoinhas, já tendo apanhado muitas pessoas pelas cidades que compõem as cercanias - Pau Lavrado, Pedrão, Catu, Pojuca, Mata de São João, Amado Bahia, até chegar a nós, aqui em Dias d'Ávila.

Na rua e a caminho da estação, ainda encontro tempo para tomar um 'menor', gíria do cafezinho puro,no bar do 'Paulista', somente para despertar o sono, para depois acender um 'Hollywood' com filtro e soltar prazeirosas tragadas.

Neste itinerário, sempre encontramos pessoas nossas conhecidas que também se utilizam do trem.

- Bom dia, 'seu' Terêncio... vai um 'menor' aí?

- Bom dia 'Nerso Grande'... vou sim.

- Vai à 'Bahia'?

- Vamos juntos, não é?

- Ainda dá tempo. São 06:10...

- Mas, ainda tem uma 'caminhadasinha' até a estação.

- Se 'véxe' não, 'seu' Terêncio. E as meninas, como vão?

- Deixei todas em casa, dormindo.

A conversa segue seu rumo, agora já na rua, na avenida Getúlio Vargas que, no tempo desta história ainda conservava uma parte já asfaltada, ladeada por um corredor de terra batida, sem calçadas e sem sarjetas. Os postes de luz ainda sustentavam antigas arandelas de lâmpadas incandescentes, que à noite ofereciam uma claridade acanhada e que hoje só remetem as saudades.

As poucas casas eram aquelas instaladas nas chácaras de veraneio de pessoas que só vinham por aqui nos finais de semana ou nas férias escolares para desfrutarem do bucolismo verdejante de nossa flora e divertirem-se no antes perene rio Imbassay que, além do banho, tinha o sapólio medicinal em seu leito, mineral que nada mais era do que o caulim, material muito utilizado para a confecção de porcelanas mas, que era muito bom para alguns problemas da pele.

Nossa caminhada segue e, agora já próximos da estação, encontramos outras pessoas, nossas conhecidas, que também se servirão do trem.

Já na plataforma, avistamos o velho senhor André envolto em suas atividades de 'chefe da estação', misturado aos papéis e aos diversos pinos que introduz em um nicho de ferro estriado, para depois acionar o velho telégrafo, informando da aproximação do comboio.

Buzinas ao longe, a locomotiva anuncia a sua chegada e, diminuindo a velocidade 'encosta' na plataforma para receber mais passageiros.

- Bom dia, minha gente.

- Bom dia, 'seu' Jessé. Vai à 'Bahia'?

- Não, seu bocó. Peguei o trem errado e vou para Sergipe. Mas é claro que eu vou para a 'Bahia', seu 'brôco'!

Risadas à parte, as pilherias eram uma constante nestas viagens. Causos e assuntos da cidade também tinham lugar para completar o tempo da viagem, que tinha uma demora de hora e meia até a estação central da Calçada.

Chega-se a nós, outro personagem que, com ar de desolação inicia a prosa:

- Sabe. Tenho de ir ao comércio para marcar meus exames no INSS.

Não sei porque ainda não colocaram uma agência aqui ou em Camaçari. É muito sofrimento pra gente, cê não acha.

Era o velho Saturnino que, acometido das dores reumáticas, lutava em conseguir atendimento com um especialista em algum hospital de Salvador. Naquele tempo, o SUS nem pensava em nascer.

Mais à frente, avistamos a figura enigmática do barbeirinho 'Bertola' que, envergando um bem passado terno - calça, colete e paletó - de linho branco, camisa de algodão rosa pastel, gravata borboleta de fecho de pressão, abotoaduras douradas, chapeuzinho 'Nat King Cole' e sapatos 'espanta vaca', aqueles de duas cores - preto e branco ou marron e branco, com pespontos vazados, muito comuns nas décadas de 40 e 50.

Bertola era do tipo 'mignon'. Não passava dos um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura. Magrinho e bem 'espigadinho', era soberbo em classe e elegância. Usava brilhantina 'Glostora' nos cabelos e ostentava um bigodinho a la 'Clark Gable'. Soube, mais tarde, que foi um tremendo 'pé de valsa' e muito galante nos tempos de sua juventude.

- Diga aí, meu lorde... - cumprimentei-o.

- Bom dia, rapaziada. Tá tudo 'legal'...?

- Tudo. Onde é o 'casório'? - perguntei.

- Não tem casório nenhum. Gosto de andar na 'béca'.

- Parece até que vai se casar. Dona Guiomar te viu sair assim?

- Mas é claro! Pois, se foi ela mesma quem engomou a béca do 'papai' aqui.

- Humm. Não sei não, viu. Isso tá me cheirando 'rapariga' lá em Água de Meninos. Vá, desembuche logo. Quem é a 'lebre'?

- Rapaz, deixe de conversa. 'Tô' indo à negócio. Vou comprar material para a barbearia.

De pilherias em pilherias e outros assuntos, o velho 'Pirulito' já alcança a estação de Camaçari para receber mais passageiros nos já quase lotados vagões.

A estação estava lotada de pessoas que tomariam o trem para se dirigirem à Salvador, nas mais diversas atividades. Alguns a trabalho, jovens iam para os colégios, mulheres para as compras, hospitais ou em visitas à parentes.

Também adentra em nosso vagão uma das figuras mais exóticas de Camaçari. O cabo 'Prudêncio' que, tutelando um jovem garoto, aproxima-se de nós e saúda a todos:

- Bom dia, senhores.

- Bom dia, 'seu' Prudêncio - respondemos todos.

- Quais as novidades? - alguém lhe pergunta.

- Vou à Salvador, na Vila Militar, levar esse garoto para ser soldado da polícia militar.

- É mesmo. Não me diga. Garoto, como voce se chama?

- Meu nome é Gilberto. Gilberto d'Errico.

O cabo Prudêncio era tido como policial linha dura em Camaçari e, por vezes, assumiu a titularidade da delegacia local, tendo, certa vez, detido o próprio prefeito da cidade, por insubordinação à autoridade policial constituída - palavras dele mesmo.

- Este menino é uma promessa da polícia militar. Ele vai longe e um dia poderá chegar a major. - dizia ele, cheio de orgulho.

Nascido em Serra Talhada, estado do Pernambuco, foi chefe de almoxarifado na construção de Brasília. Casado com dona Yayá, sentou praça na policia militar baiana e, por ocasião de sua reforma, transformou parte de sua residência em um pequeno restaurante familiar e depois abriu um barzinho onde só servia cachaça e batidas das mais diversas misturas - cerveja, não. O local ficou conhecido como o 'Bar do Xarope' e o sucesso de suas misturas etílicas atravessou os mares e foi fazer sucesso em Portugal e na Espanha.

Todos queriam saber o segredo do tal 'xarope' que curava resfriados e curava rouquidão mas, a tradição perdurou por anos a fio e, até hoje, ninguém conseguiu descobrir além dos quatro, dos cinco ingredientes que compunham a mágica fórmula.

Segue o trenzinho em sua sinuosa viagem, extrapolando sua vertiginosa velocidade de 57 a 63 quilometros por hora, sacolejando suas composições na estreita bitola dos trilhos que a mais de meio século compõem a paisagem regional.

Durante a viagem, novas paradas. Parque Verde, Parafuso, Góes Calmon, Parada dos 30, Simões Filho, Mapele e Paripe. E, até o seu destino final, a estação de Calçada, um refresco para as vistas com a panorâmica baía de Todos os Santos, com a visão de um mar sem igual e de beleza ímpar. É como se, cada janela fosse uma aquarela de pinceladas reais e animadas em movimento, numa mistura do verde das águas, com o verde das vegetações, confundindo-se com o azul do céu e o branco das nuvens, ficando o beje das praias e os salpicados coloridos das casinhas, pessoas e os barcos ao largo, como matizes que completam tão belas estampas.

Logo após a famosa ponte ferroviária de São João, instantes depois estamos envolvidos no burburinho do movimento de Salvador. Dentro de poucos instantes, chega ao fim a nossa pequena odisséia e, no desembarque, despedimo-nos uns dos outros, para tomarmos diferentes caminhos em atendimento às nossas necessidades, não sem antes firmar o compromisso de nos encontrarmos para a viagem de regresso.

- Olhe, camarada. São oito horas da manhã e minhas ocupações aqui em Salvador podem avançar até o meio-dia. Portanto, e como não temos trens neste horário para casa, vou de Viazul mesmo. - disse eu aos demais.

O 'seu' Terêncio disse que talvez nos encontrássemos na Sete Portas e nesse mesmo horário e o 'seu' Jessé, interrompendo:

- Ói. Eu vô pra Águas Claras e depois dô um pulo na Valéria, em casa de meu cumpadre. Demoro muito não e ainda quero pegar o ônibus do Guilherme. Mas, eu vou pegar é lá em Água Cumprida mesmo. Pego ele lá na 'curva' da Sibra - antiga siderúrgica, hoje pertencente à RDM - Rio Doce Mineradora.

Saturnino, aquele do INSS, pegou a 'marinete' e se perdeu de vista lá pelas bandas da Jequitaia. O cabo Prudêncio tomou o ônibus para os lados dos Mares com o 'aspirante' Gilberto e o Bertola ficou por alí mesmo no bairro da Calçada, em busca de suas loções e navalhas para a sua barbearia.

Antes de tomar o meu rumo, ainda olhei para trás e avistei os trilhos de VFFLB - Viação Ferroviária Federal Leste Brasileiro e pude comtemplar as paralelas de aço, pousadas nos dormentes de madeira, linhas que se perdem nos horizontes de infinitos destinos, assim como é infinito os meus pensamentos e as minhas lembranças dos lugares e de pessoas, algumas delas já se foram e outras ainda aí estão, e para as quais rendo as minhas homenagens.

O 'Pirulito'. Ele só retornaria às 18:00 horas em ponto. Mas aí, já seria

uma outra história.

'Gilverto d'Errico' - voce vive e, com certeza fez parte desta minha fantasia, só como personagem. Mas, de uma coisa tenho a certeza. Fez carreira militar brilhante e falta pouco para 'majorar', conforme predisse o velho cabo Prudêncio nesta minha história.

Me honre, aceitando esta singela homenagem.

Obrigado por existir.

Nelsão