A HORA MÁGICA

O dia fora difícil e o mundo não tinha culpa do seu cansaço. Mas queria culpar o mundo e todos os filhos-da-puta que fizeram daquele um dia ruim. Para culpar o mundo e soltar um palavrão entalado na garganta necessitava apenas de uma provocação. Podia partir dele, mas estava ocupado demais tentando abrir uma coca-cola com o anel quebrado quando encontrou um banco vazio àquela hora da tarde.

— Finalmente! Deus existe e se lembrou que eu também. — pensou.

Realmente, era motivo de espanto um banco vazio àquela hora, e, com certeza, havia de ter algo de errado. Olhou para todos os lados, para as pessoas em pé, para o ar jocoso das pessoas devolvendo-lhe o olhar. Olhou para o chão, um vômito qualquer que não tivesse percebido ao se sentar e não encontrou nada. Discretamente se levantou para olhar se não fora vítima das suas próprias brincadeiras de criança se sentando sobre o chiclete. Ufa! Não havia chiclete nem vômito.

Tomou da coca-cola. Observou atentamente a embalagem, a validade, um fato qualquer que justificasse o banco vazio e o olhar das pessoas rindo mal disfarçadamente dele. Nada!

Mas havia alguma coisa! Se não houvesse, não teria como culpar o mundo, tampouco poderia soltar o palavrão entalado na garganta após uma provocação. Pior seria se ver obrigado a acreditar em Deus e dar o braço a torcer.

Quantas vezes sua Tia Marilda não dissera que Deus lhe daria uma prova da sua existência? Na verdade, as palavras de Tia Marilda eram outras: “Um dia, Deus vai lhe arrancar as pernas pra você deixar de ser ateu! Seu moleque dos infernos!”.

— Meu Deus! — gritou ele espantado.

Agora entendia.

Se o banco estava vazio era por que chegara o dia em que recairia nele a praga daquela tia velha. Ocorreria um acidente e aquela era a melhor maneira dele morrer. Confortável, vagabundo como sempre fez questão de ser. Sentado, bebendo um refrigerante, vendo a vida passar pela janela.

Mas não entregaria os pontos. Havia ainda um ponto. Podia muito bem dar o sinal para o motorista e descer na próxima parada.

— Que porra de sinal! Que hora pra não funcionar. Socorro!

As pessoas no ônibus tentaram socorrê-lo. Não era uma boa hora para um ataque de histeria, para as frescuras de um claustrofóbico.

— Tirem as mãos de mim! É um complô, não é? Tudo culpa daquela velha, seus maníacos religiosos! Não vão me pegar!

Agarraram-no pelas pernas no instante em que pretendia saltar pela janela.

— Nossa que vergonha! Nem pra caber na janela... — ouviu alguém dizer.

Não bastasse a morte certa, ainda faziam questão de chamá-lo de gordo. Já era suficiente saber que seu corpo seria destroçado para ser obrigado a pensar que o que dele sobrasse para ser velado seria os restos de um homem gordo.

— Esses jovens não tem futuro! Se enchem de drogas, de todas essas porcarias do mundão, que acabam chegando neste estado. Lastimável! — disse mais um palpiteiro, dessa vez uma velha.

— Tia! — ele gritou. — Tia, por favor, tira essa catiça de mim! Eu não quero morrer.

A velha não compreendeu, desembarcou fazendo o sinal da cruz.

O sinal foi o suficiente para que ele acreditasse. O ônibus parado naquele ponto que seria salvação, o perdão da Tia, Deus que lhe permitira viver para se redimir, fariam dele um homem diferente, menos vagabundo.

Enfim, havia tempo para emagrecer. E uma caminhada até em casa seria o princípio, o depois daquela vida descrente que ele levava. Uma revelação.

Caminhou. Mas o calor era tanto que o que ele mais queria era uma coca-cola, queria descansar. Não era pecado. Tivera um dia desgraçado, com todos os filhos-da-puta para deixá-lo ainda pior. Era mais um brasileiro cansado, à procura de um emprego, de uma vida digna, mas com aquele calor era impossível ter dignidade.

Convenceu a si mesmo que fora uma bobagem, um surto por causa do calor que fazia naqueles dias, a mudança de estação, a crise econômica, sei lá. Embarcou no primeiro ônibus que tornasse sua vida mais fácil, que as melhoras viessem mais rápidas.

Contornou todos os passageiros em pé até chegar ao final do veiculo. Precisava de um lugar mais ventilado para se refrescar com o vento que vinha da janela. Mas surpreendeu-se ao perceber que havia um lugar vago, que não havia chiclete tampouco vômito naquele banco àquela hora. Desconfiou, mas não duvidaria de Deus mais uma vez. Acomodou-se.

A vida era boa afinal. E tinha perspectivas para o futuro, um emprego, uma namorada com a cara e corpo daquela moça na playboy, uma casa, uma conta bancaria... Enumerou todas as possibilidades.

Estava feliz até um desgraçado sem fones de ouvido decidir ouvir um funk no celular àquela hora de um dia de calor.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 29/07/2010
Reeditado em 29/07/2010
Código do texto: T2406483
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