A Janela

Começar com uma descrição é, de fato, muito comum entre contistas renomados. Mesmo sem ser um deles, apropriar-me-ei deste artifício tradicional, se é que este hábito pode ser assim chamado.

Estatura baixa, pele morena e olhos que não negam a sua descendência oriental, assim é M. Nós, admiradores de um belo sorriso, não passaríamos por ela sem repararmos neste detalhe. Mais descrições, por hora, ser-nos-ia impossível já que ainda não conhecemos o temperamento do seu afortunado parceiro. Nome estranho este, parceiro, mas não queríamos que rimassem as palavras afortunado e namorado e isto explica a estranheza. Não obstante, e pensando bem, acabamos de chamá-lo afortunado, o que, com a consulta de qualquer bom dicionário, descobriríamos ser um sujeito que goza de boa sorte; sorte esta, a lógica nos conduz a isto, por ele ter uma namorada cheia de bons atributos. Acreditamos que isto não o deixará bravo, este adjetivo dado ele referindo-se a ela. No entanto, se o afortunado se incomodar, que vá às favas.

Acompanhemo-la.

M. trabalha no departamento de obras de uma prefeitura. Passa lá preciosas oito horas do seu dia. Geralmente fica só, mas sempre vão importuná-la. Também são seus companheiros os lápis, mapas, computador e aqueles adereços todos que as mulheres costumam encher os seus ambientes de trabalho. Sua mesa está abarrotada de coisas. Pilhas de papéis se acumulam sobre ela. Sua sala encontra-se no segundo andar. O pequeno ambiente possui uma grande janela, o que permite uma ampla visibilidade e uma circulação de ar intensa que, muitas vezes, faz com os papéis da mesa de M. voem pelo ar e lhe provoca espasmos de ódio. Por sua grande visibilidade, esta janela é famosa também por permitir que se vejam os quartos de um hotel que localiza-se à sua frente. Entretanto, como não são os quartos que interessam as pessoas adeptas ao vouyerismo e sim os hóspedes, pode-se dizer então que esta janela é realmente indiscreta, à maneira de Hitchcock.

Hoje não está sendo um dos melhores dias para M. Está atarefadíssima. Ou como dizem: com serviço até. Ou ainda outros diriam: com muita coisa pra fazer. O telefone não para de tocar e seu chefe exige urgência em dez mil coisas a cada minuto. M levanta-se, precisa respirar. Vai até a cozinha e enche um copo de café. O aroma é revigorante e benfazejo. Cheiro de café-da-manhã em dias de férias. Retorna à sala e olha aquela mesa repleta de papéis. Olha o armário de metal e sabe que terá que unir inúmeros arquivos dele aos papéis aos quais já nos referimos e aumentar ainda mais a bagunça de sua mesa. Súbito, o telefone toca. Nem atende e nem pega os arquivos. Derruba o café em sua calça jeans que acabara de comprar. Chora de raiva enquanto xinga mentalmente e depois, dando vazão aos sentimentos, repete o palavrão alto em palavras intranscritíveis em um texto que se propõe sério e de família. Como não adianta chorar o leite derramado, neste caso, café, resolve respirar um pouco de ar fresco. Vai para grande janela que está em sua frente. A sensação é de grande bem estar quando o delicioso ar fresco entre por suas narinas. Deixa-se estar. Nisto, olha o hotel. Nota dentro de um dos quarto um movimento que lhe chama a atenção. Fixa bem os olhos. “Que será?”, pensa. A resposta é dada em seguida. Um homem nu de barbas e cabelos grisalhos surge. Ver um homem nu não assusta uma mulher de vinte e dois anos e muito menos quem trabalha numa sala que possui uma janela, já dissemos, indiscreta. Não descreveremos o homem nu. Pouco nos importará comentar sobre a protuberância abnominal que ele tem, ou melhor, a sua pança e que os espirituosos de plantão dizem ser o músculo dos bebedores de cerveja, o “pânceps”. Se M. não se assusta com a nudez do homem muito menos assustar-se-á, por motivos óbvios, quando vê surgir uma mulher loira, também nua. M. presume que o que virá depois sim, isto sim, poderá deixá-la assustada, pois tal ato, só o viu quando os olhos eram os seus, refletidos nos espelhos do motel. Quem leu o Evangelho já ouviu a recomendação de Nosso Senhor: “se teu olho te faz pecar, arranque-o e jogue-o longe”. Meu Deus, que reino de cegos teríamos! M. quer desviar os olhos, não consegue. Parecem que seus globos oculares tem vida própria.

O ato desenrola-se como desenrolam-se todos os atos desta estirpe, desde Adão. Este último talvez só seja diferente dos demais pela entrada em cena, neste quarto, de um homem de cabelos aloirados e formas bem feitas. Ela fica perturbada ao perceber que sabe que este homem tem olhos azuis. Trata-se do seu namorado.

Seu cérebro fica enfurecido, sua cabeça arde em chamas, o corpo formiga. “Não pode ser semelhante ousadia!” Claro, claro! Não disse estas palavras e com esta formalidade; os momentos nervosos são feitos para as palavras rudes; e estas, àqueles. No entanto, cabe a nós escreveremos o que ela falou, e resolvemos que seria assim. Feito está. De raiva, M. não sabe se grita da janela para aquele “traste, traidor de uma figa!”; não, não, não gritará, “todos ficarão sabendo, se eu gritar”, e como explicar: “Tal disparate? Tal vergonha? Tal falta de respeito?” Nota então que a sua janela também tem esta vantagem. É sua, só sua. Sem traições.

Descerá, resolve. Dane-se a pilha de papéis, o jeans encharcado de café e telefones não atendidos. Entrará naquele hotel e matará a todos. Não o fará, sabemos que não, mas deixemos que a raiva dela permita tais pensamentos. Quem não os teve semelhantes?

Dirige-se à porta. Trancada. “Trancada? Ora, não a tranquei!” Tenta abrir a porta. Esta, porta que é, não sabe falar, não responde aos puxões e não a deixa passar. “Não posso ligar para a manutenção, seria o mesmo que gritar.”

Volta à janela. Qual quê! Não há nada. Esfrega os olhos. “Não é possível! A janela está aberta, os mesmos móveis, o mesmo quarto! É o mesmo quarto, quartos não se movem, movem-se?” Não, sabemos que não, mas respeitamos o devaneio do próximo.

Retorna a porta. Outra interjeição aqui seria exagero, mas... A porta está aberta... escancarada... “Aberta? Quem a terá aberto?”, é realmente o que M pensa. Mas já que está aberta M. aproveitar-se-á disto para ir ao hotel. Tira seu celular de um saquinho de pano cor-de-rosa com uma gravura da Hello Kitty. Desça as escadas enquanto fala soturnamente: “Alô”, “Seu canalha, saia deste hotel e venha aqui na frente da prefeitura!”, “O que?”, “Cínico”, “Algo de errado meu bem, o que está acontecendo, é alguma brincadeira? Não estou gostando!”, “Vai me dizer que não estava no hotel com um idiota e uma vadia!”, “Meu bem, você está louca? Espere um segundo”, “Alô, M. é você?”, “Sim, quem fala?”, “É o Borges, da oficina”, “...”, “Alô, M, tá vendo? Estou na oficina!”, “Desculpe-me, tem acontecido coisas estranhas hoje aqui...”, “Quero realmente muitas explicações!”, “Explicarei.” Desliga.

Neste momento onde acontece esta conversa, já dissemos, ela está descendo as escadas e passando por todos os departamentos. Pensa que talvez ninguém esteja notando a conversa. Ledo engano.

Está desnorteada, confusa, triste. O coração está acelerado. Seu rosto começa a doer, os lábios molhados de saliva, o rosto e as mãos também. Os olhos doem ao contato dois raios luminosos. Sua mão dormente marca seu rosto que passou horas em cima dela. O anel que usa lhe faz um vinco na bochecha. A claridade da janela invade o ambiente onde está deitada, pois uma mão puxa as cortinas. Está num sofá velho e empoeirado. Surge então um homem de barbas e cabelos grisalhos que diz: “Querida M. vamos à feira?”

Laanardi
Enviado por Laanardi em 28/07/2010
Reeditado em 24/01/2019
Código do texto: T2404482
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