A PRIMEIRA E A ÚLTIMA NOITE DE MARIA
A primeira vez que fiz amor com Maria não teve qualquer amor. Apenas um animal do campo fazendo sua refeição. Maria foi devorada ali mesmo, no sofá da sala, sem qualquer vela acessa, sem cheiro de rosas ou estouro de champanhe. Maria entrou na minha vida trazendo muitas esperanças. Não sei o nome que eu daria agora para o que restou do feixe de sonhos que Maria trazia consigo, embrulhado como se faz a um presente caro. Maria não aprendeu a reclamar, não é o tipo de mulher que usa artimanhas para aniquilar um homem. Desconfio que Maria é um ser de outro mundo e que cumpre pena aqui na Terra. Não haveria qualquer outra sã explicação para a condição que ela mesma se impôs.
Algumas mulheres passaram pela minha vida e nenhuma delas, nem por um mísero minuto, deixou em minha memória a marca que Maria conseguiu deixar. Não senti qualquer amor pelo corpo de Maria. Não senti qualquer amor pelo espírito de Maria. Não consigo, por mais esforço que eu faça, lançar uma definição que consiga encaixar uma lógica que explique porque a vida de Maria tenha se entrelaçado à minha. Há nisso um certo mistério que nem mesmo se eu vivesse sete vidas sem intervalo conseguiria compreender.
Em todos os nossos encontros Maria sentia a necessidade de contar detalhes de sua infância sofrida após os nossos exercícios amorosos. Talvez fosse a forma que ela encontrou para se purificar, já que considerava todo contato com o sexo masculino impuro. Mesclar o profano às suas mazelas infantis se transformava no álibi de Maria perante algum imaginário tribunal.
Não lembro de muitos pretextos antes que Maria pudesse acordar na minha cama, despenteada, sem brincos e com a maquiagem desfeita a denunciar traços de uma feiúra que se aproximava em uma marcha acelerada. Uma feiúra que também era de alma e não permitia qualquer recusa. Que não permitia que se recorresse.
Maria não era exatamente o que eu chamaria de mulher prendada entre quatro paredes. Sua habilidade na cama mais marcante se resumia a arrumar bem o lençol no dia seguinte. E colocar um maldito jarro de flor próximo à janela.
- É para dar sorte – dizia ela, numa voz irritantemente ingênua.
Desconfio que a sorte e eu temos um problema de incompatibilidade de agendas. Não sou candidato a ganhar na Mega Sena. O máximo que estive perto da sorte foi ter escapado com vida de um acidente que me custou duas costelas. Talvez o milagre foi eu ter me apaixonado pela motorista que me atropelou. Não sei se por pena ou desencargo de consciência, ela me amou por um mês. Agradeci a Deus por essa graça e consegui imaginar como Adão se sentiu no paraíso, quando depois de uma cirurgia nas costelas também lhe apareceu uma namorada. Adão foi mais longevo que eu em sua aventura amorosa. Enquanto o meu relacionamento durou um mês de 30 dias, Adão viveu feliz para sempre com sua Eva por incríveis 900 anos. Acrescente-se a isso o fato de não pagar aluguel no paraíso e não ter que frequentar a casa da sogra para almoços dominicais.
Afastemos Adão, Eva e a sua demorada lua de mel no paraíso e voltemos à minha vida, com aluguel de um barraco de meia água, contas a pagar no fim do mês e uma mulher que me diz juras de amor enquanto devoramos um banquete de carne moída com abóbora. Maria nasceu para amar incondicionalmente, nunca exigiu ser venerada como o fazem as outras mulheres. Ela sempre se contentou com as migalhas que caem da mesa. Como uma obediente cadelinha, ela não vê qualquer demérito em lamber no chão aquilo que quem se serve do banquete deita fora da mesa farta.
Até hoje não aceito a ideia de eu não ter amado Maria como ela merecia. Não consigo catalogar as noites que passei em claro vendo programas religiosos na televisão para me punir do martírio que impus a Maria. Poderia ter acolhido com sentida preocupação seus sonhos e delírios. Mas Oscar, o insensível, não soube, não quis, não ensaiou qualquer tentativa. Maria não recebeu de mim nada de verdadeiro. Nem mesmo as flores que ornamentaram seu caixão.
Mas por enquanto deixemos Maria viver um pouco mais. Não seria justo antecipar, mesmo que por minutos, sua morte. Não creio que ela tenha levado qualquer mágoa para o túmulo. Se conseguiu levar algo, certamente foi qualquer coisa que a faria merecer uma credencial de acesso à área de camarotes do céu. Nunca vi na vida alguém merecer mais a salvação do que Maria. Ela tem a ficha mais limpa do que um terço dos santos eleitos pelo Vaticano. Até seus gemidos mais safados foram mais puros do que o mais casto canto gregoriano.
Posto tudo isso, a virtude de Maria tornar-me-ia um inveterado vilão? Não creio. Mas as vestes alvas de Maria, sua nobreza de sentimentos e sua alma de virgem me classificam como um ser cruel e sem grandes virtudes. Mas, ao meu bruto modo, amei Maria como ela precisava ser amada. Fui, no imaginário medieval de Maria o mais solícito dos príncipes. Na sela do meu cavalo branco, Maria sentiu-se a mais amada de todas as princesas. Sentiu-se resgatada para sempre da masmorra que vivia, em companhia de um incansável e vigilante dragão.
Pensando nela Jesus bem aventurou os pobres de espírito no Sermão da Montanha. Nunca conheci um espírito mais mendigo. Nunca aspirou sapatos caros, um carro ou mesmo um jantar romântico. Sua única aspiração era manter ao seu lado o homem amado, como uma menina que se agarra à sua boneca. Eu era sua boneca de pano, que ela não cansava de bolinar, que ela não cansava de adorar, de carregar pela mão em suas brincadeiras intermináveis. Como eu desprezava tudo aquilo!
Mas agora Maria é uma santa e deve estar fazendo estágio no céu. Eu a deixei morrer. Poderia tê-la salvo se quisesse mas não o fiz. Não há maldade em minha inércia. Eu iria abandoná-la em questão de dias, semanas talvez. Em qualquer vida fora da minha proteção, do meu amor e do meu barraco Maria não sobreviveria, não havia vida própria nela para se lançar pelas campinas a procura de qualquer outra razão de existir. Dei-lhe meu pão, minha água, minha sombra, meu sêmen e minha palestra. Soprei em suas narinas o único sopro de vida que ela precisava. Maria foi feliz como nenhuma outra mulher de sua época o foi.