Ocaso ou crepúsculo?
“[O alvorecer] é a hora em que as coisas perdem a consistência de sombra que as acompanhou durante a noite e readquirem pouco a pouco as cores, mas nesse meio tempo atravessam um limbo incerto, somente tocado e quase envolto em halo pela luz: a hora em que se tem menos certeza da existência do mundo” (CALVINO, Italo. O cavaleiro inexistente. Tradução Nilson Moulin. 1ª edição, São Paulo. Companhia das Letras, 2002 P. 20)
Estávamos sentados num cais, diante da primeira ou da última hora do dia (nós não sabíamos); ao olhar a anêmica claridade, ela disse, em voz baixa, talvez só para si mesma, que o ocaso era lindo.
Depois de um silêncio necessário, lhe perguntei:
- O fim do dia ou o vocábulo?
- Os dois. Mas refiro-me agora à palavra. Adoro o termo ocaso.
- Não gosta de crepúsculo?
- Prefiro ocaso - insistiu ela.
- Gosto mais do pôr-do-sol que dos nomes que se lhe dão - eu disse. E, em vez de ficar quieto, observando o crepúsculo que se nos apresentava, insisti nas palavras. - Nos últimos e nos primeiros instantes de luz, a incidência horizontal do sol - tão distinta da verticalidade do meio-dia - faz com que o céu apresente as mais belas cores, as quais mudam a cada minuto, enquanto se caminha para a escuridão ou se foge dela. É difícil não pensar que o sol, ao constatar a proximidade de sua morte ou de seu nascimento, tente parecer mais suntuoso.
Ela me respondeu:
- Esta horizontalidade inerente ao crepúsculo, de que fala, traz uma sensação de paridade: ao meio-dia há uma claridade intensa e inelutável, o sol reina absoluto; mas, no ocaso ou na alvorada, o vemos à altura de nossos olhos, e temos a ilusão de que a terra se lhe sobrepõe. E o brilho intenso, que nos impede de observá-lo nas suas horas mais reluzentes, cede no começo e no fim do dia: o sol, logo que nasce ou perto da morte, torna-se fraco, permitindo que o observemos sem nos cegar. Gosto dessa vulnerabilidade. Você prefere crepúsculo a ocaso?
- Sim. Ocaso sempre significa fim - expliquei-me. - Crepúsculo, no entanto, pode se referir à última ou à primeira hora do dia: pode ser matutino ou vespertino - presta-se a descrever a luz frouxa que, ao amanhecer, liberta todas as cores, e, ao anoitecer, precede a escuridão. Acredito piamente que a melancolia do fim da tarde (você também a sente?) é um luto, ainda que inconsciente, pela prisão das cores.
- Às vezes sinto essa melancolia; mas não sei é a morte das cores sua causa. Na verdade, o nascimento, auge e morte do sol e principalmente essa transformação do dia em noite ou vice-versa - a hora crepuscular - lembra-me mais da intensidade dos sentimentos do que de um sentimento específico.
- Como assim? - perguntei.
- Gosto de comparar a intensidade do sol ao que as pessoas me despertam. Há pessoas que provocam imediatamente a intensidade do meio-dia, ainda que não durem mais que uma tarde ensolarada; outras parecem corresponder ao trajeto de Hélios no seu carro de fogo pelo céu: surgem do oceano, no crepúsculo, ascendem gradualmente, brilham impiedosamente ao meio-dia, e descem, pouco a pouco, ao ocaso e à noite. Há as que nunca deixam de ser como manhãs (ou tardes); e também as que são crepusculares, e dentre estas existem algumas que não se pode definir com segurança se são como ocaso ou como o amanhecer.
- Você se esqueceu da noite - afirmei. - Penso que existem pessoas que despertam sentimentos correlatos à noite: algo misterioso, obscuro mas atraente - mormente quando Hélios se reflete na face lunar e impõe sua tênue e difusa claridade à escuridão: quando o sol invade a noite por meio de seu reflexo na lua cheia (de luz solar).
- Na verdade, se conhecemos uma pessoa há muito tempo, vemos todas as fases do dia e todas as estações nesta relação: o sol do verão, a indefinição de um crepúsculo, o calor agradável de uma manhã de outono, a noite invernal... Você já reparou como os turnos do dia correspondem às estações? O que é o inverno senão a noite? A primavera é a manhã; o meio dia, o verão, e a tarde o outono.
- Hélios é o rei do controle das estações; o tempo é medido por meio das voltas que damos em torno do sol. É a relação entre sol e terra, que, em última instância define os dias e o tempo; e é ela que confirma a importância da distância nas relações. Hélios conduz seu carro de fogo, puxado por seus cavalos, a uma distância perfeita da terra, sob pena de, ao se afastar demais, nos relegar ao frio mórbido, e, ao se aproximar muito, nos incendiar.
- Você sabia que isso já aconteceu? – perguntou-me ela, olhando o céu com se procurasse alguém. E respondeu: – Certa vez, Hélios entregou a Faetonte, seu filho, as rédeas do carro de sol e ele, imaturo e impetuoso, violou a distância que deveria manter da terra e se aproximou tanto que causou um aterrorizante incêndio. Mas, apesar da tragédia que culminou com a extinção de Faetonte (Zeus o fulminou com um raio), este incêndio concedeu ao homem o poder sobre o fogo; daí se infere que o desequilíbrio não causa apenas danos, mas também ganhos.
- Às vezes é preciso ultrapassar certas barreiras, apesar da dor de fazê-lo. O fogo é um dos principais elementos da transformação: é por meio dele que forjamos metais, violamos a escuridão da noite, livramo-nos do frio... Trata-se de um pedaço do sol que manipulamos conforme nossa vontade; embora às vezes ele nos lembre de sua superioridade e descontrole primários e nos submeta à sua força.
- Vejo-nos num crepúsculo - ela falou olhando-me nos olhos. - Não sei, no entanto, se se trata de um novo amanhecer ou se é a noite que começa a se impor. Não importa. Ainda que seja a noite, sei que a escuridão passará, e um novo dia, iniciado com um novo crepúsculo, virá.
- Desejo a alvorada. O ocaso é belíssimo, eu sei. Mas quero a alvorada; mesmo sabendo que para nascer aqui, o sol deverá morrer lá...
E ali permanecemos, em silêncio, perscrutando o céu, o qual, desde a primeira palavra, possuía a mesma tonalidade púrpura. O tempo parecia suspenso: a sensação que tínhamos era de que o crepúsculo manter-se-ia enquanto não convocássemos o sol ou a escuridão.