De alguma forma ela havia chegado a algum lugar. Nunca soube dizer, se por sorte ou obra de melhor destino que o de irmãos que não chegou a conhecer. Sabia porque a velha avó, antes de morrer, lhe deixara mal escrita carta, quase ilegível por conta do contraste pouco ou quase nenhum entre o grafite do lápis de ponta rombuda e o pedaço de papel de pão abeberado de gordura. O retrato da vida era ainda em preto e branco e o tempo, além de amarelar, andou maculando paisagens hoje tão embaciadas que não valia a pena tentar reavivar. Vagamente maquiava, diante dos olhos fechados, um charco que carregava no colo feito menino recém-nascido, a veia funda por onde escorria uma seiva negra e cheia de pequenos bichinhos. Uma pinguela de bambus inutilmente trocados que era, de certa forma, uma passagem secreta. Secreta e proibida, por levar a um canteiro de obras onde os homens dormiam e se embebedavam até altas horas em companhia de mulheres alegres. Delas, o riso alto e engastalhado em palavras incompreensíveis, corria vento afora, batendo nas tábuas levantadas, portas improvisadas, que vedavam a passagem para o quarto-cozinha, de chão batido, coberto por lonas, pedaços de madeira e com sorte, metades de telhas de amianto, tão escuras quanto a vida que comichava no atoleiro putrefato.
Já nesse tempo, os irmãos desconhecidos, por fome de teto, comida e sonhos, perambulavam por outras ruas ou tendas. Talvez por perto, mas distante do medo de acordar no meio do temporal sem roupas de frio e sem travesseiro para livrar os olhos dos raios. Por perto, mas longe do sono forçado pela falta da panela no fogo. Por perto, mas longe da letargia do dia quente, movido a água salobre. Sem nada, ali, pé no chão, a vida era cinza. A roupa do pai era cinza, o vestido da mãe era cinza, a roupa de cama sobre o papelão cinza, era cinza.
Para se chegar a rua, sem passar pelo barrento acampamento, era preciso andar para mais de trezentos metros. Coisa que jamais fez sozinha. Na verdade, poucas vezes atravessou aquele matagal pela picada que cabia apenas dois pés. Saísse ela mais o pai e a mãe, como aconteceu pela última vez que os viu, ia-se em fila, no silêncio duro da despedida forçada, atravessado pela tosse estranha do pai, da qual não conseguia se livrar. Ela sabia que nunca mais se veriam, antes mesmo de entrar naquele carro preto que cheirava um cheiro que nunca pensou existir. Não quis olhar pela janela e nem virou-se quando o carro saiu feito um jacaré das águas de um rio. Engoliu em seco o único beijo de mãe que chegou tanto envergonhado até sua face e a magreza das mãos do pai, de onde nenhum calor ficou para guardar.
Acostumou-se com facilidade com a vida de bordados e rendas, com as cores vibrantes e as almofadas de cetim, o que lhe rendeu elogios de uma inteligência desconhecida, mas necessária e docilmente aceita como verdade. Arranjara uma outra mãezinha, que a paparicava quando terminava de arrumar todas as camas da casa que era uma casa. Mais fácil foi o aprendizado com os talheres, copos e pratos porcelanizados. Pratos tão grandes que o pouco alimento ali arrumado lhe parecia ter, de uma vez só, muito mais do que experimentou em toda sua vida. E com a água transparente com que lava-se por dentro e por fora, expulsando cada vez para mais longe a lembrança daquele veio negro que um dia comparou ao próprio sangue. Acostumou-se - tanto que passou a arriscar uma pitada aqui e acolá – com a fumaça e o gosto das cigarrilhas, com os gestos das raparigas de quem ganhava incontáveis elogios e beijinhos de longe e, finalmente, encantou-se com as cores vibrantes, tão diferentes daquele cinza que já virara cinzas.
Moça feita, não precisava atravessar as pinguelas da vida. Os homens, sim, vinham até ela, vestindo seus sobretudos italianos e suas gravatas de seda, cheirando a colônia e champanhas francesas. Ser só na vida não era motivo de nada. Muito menos de choro. Quando muito, para uma fina e enevoada tristeza do que já nem se recordava muito. Difícil, mais do que difícil, era não conseguir entender porque nascera de amor seco, desse que nem terra de deserto cru, incapaz de serventia. Uma sinceridade, seu singular endereço, sua única verdade.