SEXTO SENTIDO

Passavam-se os minutos celeremente. A noite era uma dúvida, como assim fora o dia. A medida que o tempo corria, naqueles idos de 1942, mais tensa D. Maria ficava. Dentro em pouco já se faria madrugada. D. Maria ouvia apenas um que outro ruído, os barulhos que são comuns em qualquer casa: estalidos de madeiras, vento que entra por uma fresta, o ronronar de um gato em sua cesta de dormir, as batidas de um relógio, parecendo cantar o tempo lá do alto da parede, enfim, coisas que não se notam durante o dia.

O ranger da cadeira no movimento de seu lento balançar, parecia fazer dueto com aquela sinfonia do tempo que o relógio ia marcando, segundo a segundo, de modo compassado. Nela, com um xale a cobrir-lhe os ombros, D. Maria, cabelos já grisalhos, óculos à ponta do nariz, cruzava os dedos manejando uma agulha, fazendo crochê. Um rádio de duas ondas, o mesmo que seus filhos, sem ela saber o porquê, ouviam uma tal de BBC de Londres, postado sobre uma estante torneada em madeira, estava levando ao ar um programa musical. Aquela hora da madrugada, D. Maria já não sabia bem o que ouvia. Na verdade, seu pensamento se estendia muito além do limite do som daquela simples aparelho. Realmente não interessava o que ele estava transmitindo. Por vezes lhe parecia ver a silhueta de seu filho, produzida por um ou outro acorde mais forte, que a sacudia.

Repetiam-se entre os balanços da cadeira, sacudidelas em seu coração. O som mais forte de uma música clássica, mais movimentada, lhe parecia a porta se abrindo e seu filho por ela entrando. Isto era uma constante repetição.

Todas as noites se punha naquela cadeira à espera do momento que a tranqüilizaria, depois de ter suportado o dia com aquela mesma ansiedade. Não podia se aceitar conciliando um sono, pois não teria menor chance de um descanso, assim, com seu coração a lembrar-lhe em cada batida, a ausência de seu filho.

E o tempo se punha a correr. E D. Maria muito raro conseguia adormecer. Em suas vigílias repetidamente se surpreendia orando. Uma e outra vez perguntava-se: Onde andará meu filho? E acalmava-se respondendo para si própria: Está voltando e seu anjo de guarda protegendo sua volta.

Mas, volta de onde? Há meses não o vejo?

Então, vinham explicações nada convincentes, que lhes eram dadas por pessoas que mais lhe queriam fazer tranqüila do que a si própria se tranqüilizarem. Era de fato um enigma. E assim passavam-se os dias.

Certa manhã, D. Maria acordou de seu escasso dormitar em choro convulsivo. Entre um e outro soluço não conseguia articular palavra alguma.E assim foi o dia inteiro. Todos preocuparam-se com o agravante estado que agora parecia acabar de vez a saúde de tão querida pessoa.

Já era noite quando num momento de calma D. Maria amainou de chorar. Todos achegaram-se à ela. As lágrimas rolavam por suas faces, ainda, como um caudaloso rio de sofrimentos, mas, ela não soluçava. Os olhos iluminaram-se e sua expressão facial modificou-se. Agora, era mais cansada do que triste. A luminosidade do seu semblante, ainda perturbado, mostrava a satisfação da resposta encontrada. Ergueu a cabeça, fitou a todos em volta e mansamente falou: Sei onde meu caçula está. Por que não me disseram? Eu o visitei esta noite. Sonhei com ele. Ele foi para a guerra. Eu o vi no campo de batalha. Meu sexto sentido o descobriu... Que Deus o proteja!

Marcos Costa Filho
Enviado por Marcos Costa Filho em 19/07/2010
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