NATIVOS DO SACO SETÚBAL
 
 
Era uma vez...
 
 
 
Era uma vez um senhor, um velhinho simpático, contador de causos, cuja idade, os poucos, afoitos e raros cabelos já denunciavam. Era analfabeto, porém sábio. Mas tudo o que dizia era escutado com certa curiosidade e reverência. Pois, a sua sabedoria e a perspicácia nativa lhes eram peculiares. No entanto, a sua figura humana transparecia na simplicidade de um homem pobre, a santa presença de muita humildade. Esse velhinho, que muitos conheciam por “Senhor Custódio serrador” era, na verdade, o Senhor Custódio José da Silveira. Ele era o meu avô, nascido por volta de 1873 na localidade de “Saco Setúbal”, hoje conhecido por Taquaraçutuba. Mas infelizmente, faleceu em 23 de fevereiro de 1951, quando eu era apenas um menino de nove anos. Para uma melhor identificação da pessoa que pretendo historiar nesse conto de verdade, nesse “era uma vez”, pois, ele era o pai do meu pai.
Era uma vez o senhor Custódio José da Silveira, moço de vinte e três anos que se casou no dia 25 de fevereiro de 1896, com Luísa José de Oliveira, moça prendada, açoriana de dezoito anos de idade e de boa cepa. Residente no mesmo lugar que o dele, ou melhor, no “Saco Setúbal”, onde se deu ou foi o princípio da colonização da futura cidade de Imaruí. A avó Luísa, assim como era conhecida pela parentalha, era filha de José Joaquim D’espíndola e de Maria de Souza, cujo primeiro nome ou o nome próprio, é totalmente ilegível no livro número 01 do Registro Cível das Pessoas Naturais da novata comarca de Imaruí.
Quanto ao meu avô, o Senhor Custódio José da Silveira, mais conhecido por Custódio serrador, era filho de Joaquim José da Silveira e de Custódia Ignácia de Jesus, conforme consta na certidão de casamento do mesmo, assentado no livro número 01 do Registro Cível das Pessoas Naturais de Imaruí.
É de se notar que, na aparência fisionômica dos acima citados, principalmente nas aparências dos meus avôs, que todos já estavam naturalmente miscigenados com índios local e afro descendentes, que por aqui haviam aportado oriundo de São Paulo, com os bandeirantes que traficavam índios para a mão de obra escrava.
Em virtude do seu porte atarracado, baixinho e com certa tendência à corcunda, foi apelidado pelos seus amigos de “tatu”. Entretanto, mais tarde e já um tanto amadurecido e, em função do seu hábito de curtir butiá na cachaça em potes de barro, foi novamente apelidado de “butiá”. Mormente, o butiá na cachaça era a bebida que apreciava e conservava com muito zelo, para brindar com os amigos que vinham costumeiramente em sua casa à noite, para um jogo de azar, tais como o conhecido buraco e a tranca.
Era uma vez o “seu” Custódio serrador, tatu ou butiá, ele era um homem honesto e trabalhador e, como todo bom descendente de açorianos, apreciava com muito tino a arte da pesca e a prosa insólita de seus causos e encontros com as aparências de almas do outro mundo. Seu hobby ou o divertimento especial era o de curtir fumo de rolo, de corda ou fumo crioulo e tratar das abelhas, consideradas as suas amigas prediletas, pois ele as apelidava carinhosamente de “neguinhas”.
Ah, falando das suas “neguinhas”, as abelhas que cultivava com extremos cuidados, nessa época, ele tinha também uma secretária para essa lida. Estamos querendo falar da menina Zaira Matos, uma verdadeira gazela, magra e moleca, que lhe comprava num “pé cá e outro lá”, na venda da Dona Dalila, a sua indispensável cachacinha. Até hoje, ela se lembra dos tempos de infância que passava na casa da tia Luísa e do tio Custódio. Pois ela também era considerada um esporão da família por parte de sua mãe, a Dona Mariquinha do seu Tiago, todos oriundos do famoso “Saco Setúbal”.
Era uma vez, lá por volta de 1949 ou 1950, quando nós já éramos moleques feitos, o avô Custódio nos chamava, para espantar os sapos que saboreavam as suas “neguinhas, as abelhas. Ele tinha um medo apavorante dos sapos, corria mais deles do que do próprio diabo. Quando tirava a sua sesta e nós fazíamos barulho ele gritava lá do seu quarto: - Não fazem bulha, seus arcalhos! Em tempo, “arcalho”, quer dizer inútil.
Quanto à origem do nome “Saco Setúbal”, deu-se esse nome, em função da forma ou do acidente geográfico com que o mar avançou e desenhou terra adentro, formando um verdadeiro saco, presume-se que a região naquela época, por volta de 1800, era propriedade de um senhor de origem portuguesa de sobrenome “Setúbal” que, por uma questão referencial da história do lugar, ficou conhecido por “Saco Setúbal”, atualmente conhecido por Taquaraçutuba, nome de origem indígena dos antepassados carijós que por aqui habitavam.
Nesse pretenso conto que um dia foi real, talvez até pudesse chamá-lo de história. Mas como eu usei várias vezes a expressão: “era uma vez”, somente para homenagear o meu inesquecível avô, um prosador nato de contos. Na verdade ele sempre usava essa expressão, a fim de chamar a atenção e aguçar a curiosidade de seus ouvintes para os seus causos duvidosos e insólitos. Isso porque, o meu avô era um especialista em contos, verdadeiros valores culturais, para não dizer imagens arquetípicas que atravessaram gerações. Pois até hoje, ainda povoam no imaginário desse povo nativo, as várias interpretações desses causos duvidosos, que nada mais são do que expressões culturais açorianas mescladas com as crendices, lendas ou superstições de índios e negros.