Água na Peneira
Havia um menino que apreciava carregar água na peneira porque gostava mais do vazio que do cheio. Dizia que os vazios eram maiores e até infindos. Com o tempo descobriu que escrever era o mesmo que carregar água na peneira. No escrever podia ser pierrô, palhaço alegre e palhaço triste, rei e mendigo, filho preterido ou filho preferido, anjo sem asas e até pássaro que voa com uma asa só... Podia tirar o sol da sua imagem e trocar pela chuva, derreter a neve para desprender os pés da formiguinha, casar dona baratinha com o gigante do pé de feijão, acordar a Bela Adormecida antes dos cem anos amaldiçoados e até mandar o caçador arrancar o coração da madrasta da Branca de Neve e queimar na fogueira. Podia também fazer a rosa se transformar em espinho para que ela pudesse compreender que sua feiúra é bela porque brotou só para protegê-la. Podia colocar pernas nos sonhos e deixá-los ganhar o mundo... Podia nascer de novo, deixar de carregar água na peneira e ser igual a qualquer outro menino que soltava pipa, girava pião, soprava bolinhas de sabão... Assim, podia até pensar em fincar os pés no chão, só pensar...
17 de julho de 2010
baseado num conto de Manoel de Barros