Degraus e Paredes

Degraus e paredes

Rosália Cristina

Preferiu subir as escadas. Era final da tarde de um sábado não tão tranquilo quando lhe restara a opção: elevador ou escada. Já tinha perdido a noção do cansaço e seus pés ressequidos já não se importavam com o esforço que viria dos degraus sobrepostos diante dele. Com as malas, então, essas que curvavam sua coluna dolorida, diante da opção, já não se queixava – de fato sobrevivera aos arranques do desnivelado dia.

Logo cedo, quando sentiu o peso da chave do apartamento nas mãos e escutou o barulho do zíper da mala, tentou não se amortecer com o que estava esquecendo. Foram anos naquela inércia de acordar cedo, confabular com os parentes no mesmo teto e passar o dia na praça vendo pássaros criarem seus ninhos. Olhava-os ressentido como se fosse também capaz de criar o seu e sair voando e voltar quando seu corpo assim o permitisse. Dias cálidos, sem memórias a não ser da rotina que tanto o fatigava.

Como dizia, a chave pesara em suas mãos, inclinando-o a apressar-se, pois o seu escolhido ninho o esperava. Na mala, alguns pares de roupas e dois sapatos. Os livros, já os levara. Não pudera se separar dos seus amigos da praça. Eles, os livros, eram os companheiros do riso, do choro, da nostalgia, do ânimo. Todos iriam morar com ele. Haveria de ter lugar para todos ou nada feito. Seus universos guardados. Fechou, enfim, a porta do seu quarto. Atravessou a sala como que liberto de uma prisão que não existia. E não olhou para trás.

Na ruazinha, berço de sua infância, viu-se nas pernas magras dos meninos que jogavam bola de gude, sorriu olhando ao longe o menino bravo que roubava manga no quintal de Dona Ana. Ah, como eram doces na sua época! Agora já não sabia. A infância tem dessas coisas: conhece-se o sabor de cada pomar, a aridez de cada solo, a altura dos muros vizinhos, a ferocidade dos cachorros da rua (ou ainda a não ferocidade dos cachorros da rua), constroi-se esconderijos abertos nas esquinas da vontade. Mas agora estava ele com a sua mala, a saudade inviolável dos seus livros que o aguardavam e a pesada chave nas mãos.

- Já vai S. Durval? – Perguntou a vizinha, como se o visse nos tempos idos e precisava trazê-lo de volta ao tempo presente.

Olhou-a, sorriu levemente, fez que sim com a cabeça e os olhos marejavam. Não! De forma alguma estava infeliz. Apenas a máquina do tempo que tomara seu corpo e mente nos segundos anteriores à chamada da vizinha, o fez sentir-se o menino Durval que há tanto estava esquecido, guardado em suas memórias, arquivado num tempo distante, onde deixara o barulho dos fuscas, os cheiros dos bolos das vovós e os gritos dos moleques.

- Já faz tempo que parti, já faz tempo. - Disse com a voz truncada de quem não queria ser bem ouvido.

A escada, com seus azulejos marrons, o convidava. Tirou o chapéu, enxugou o suor e olhou para o alto. Subiu cada degrau como se estivesse saindo de um útero: o útero de sua antiga vida que já não lhe cabia nas mãos e nas ânsias do peito. Os filhos casaram-se, a esposa partiu cedo para onde num futuro ele crê que a encontrará. Insistiram, tentaram mudar-lhe as ideias, convencê-lo de que não havia necessidade daquilo. O que era prisão para seus filhos lhe era libertação. Ficara acostumado com os ruídos da praça e, por isso, não se acostumara com o silêncio de seu lar. Também não queria o barulho dos netos, as conversas das noras, nem tampouco as perguntas inoportunas da vizinha. A cada degrau subido a sensação de libertação de tudo isso. Seus livros o aguardavam no seu novo quarto e isso lhe bastara.

- Senhor Durval?!

- Ora! É assim que sou recebido? Vamos... pois tenho uma longa escada pela frente! Pode me ajudar com essa mala? E meus livros, estão bem?

¬ - Claro, Sr. Durval!... - Sorriu a enfermeira, tentando com a simpatia no rosto dar-lhe as boas vindas. - Bem... O jantar será às 18h. Se tiver alguma dificuldade use aquele telefone que viremos atendê-lo. Seja bem vindo!

- Obrigado! – Olhou-a com um sorriso afetuoso, apertando-lhe a mão firmemente. Ela seria seu novo anjo. Seu novo banco de praça, seu amontoado de novidades.

A porta do dormitório estendeu-se como um lençol branco diante dos olhos envelhecido daquele homem. Seu novo lar estava preparado para recebê-lo. Entrou colocando as malas no chão. Da porta via-se a cama de madeira, pintada recentemente para o novo morador. Perto da cama, nas proximidades de uma modesta janela, o criado-mudo com um bloco de anotações, o telefone, preparos para chá e seus costumeiros remédios. No lado esquerdo, à entrada do quarto, um roupeiro simples ainda vazio. E, estando no meio do quarto, sobre um pisado tapete, voltando-se o olhar para a parede da porta vê-se uma estante de metal com os velhos livros, já organizados. Ao lado da cabeceira da cama, a porta do banheiro.

Da janela, ouviam-se vozes de homens a conversar num pátio, jogando cartas e dominós. Sobrepondo-se às vozes humanas, um casal de pardais construía seu ninho e trazia música para tarde que corria. Observou satisfeito tudo aquilo e trancou-se, liberto, para conhecer seu novo lar.

Rosália Cristina
Enviado por Rosália Cristina em 18/07/2010
Código do texto: T2385475
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