O Magricelo da Rua Arbat (dos Diários de Moscou)
Não raro, nas esquinas frias e bares fedorentos de Moscou, podemos encontrar músicos talentosos implorando por um único rublo para encher a barriga ou que seja por um mísero olhar para encher o espírito. Nesses anos todos trabalhando com arte, aprendi que a fome do ego é a única que não se pode deixar de ser saciada. E ela nunca é saciada. Vejam só: o espírito do desprovido de talento morre de inanição, fica atrofiado em forma de inveja e auto-comiseração - ou de crítico especializado - antes mesmo que o corpo que o carrega desça para as valas comuns. Já o espírito do talentoso... Também morre de fome porque toda essa contemplação, estes aplausos que estouram nas abóbodas dos teatros, todo esse amor idiota que se tem por alguém que irrompe o som monótono da realidade com fogos de artifício projetados por um soneto, por uma clarineta ou com o que quer que seja, acaba, ou é ainda muito pouco para a grandeza de tal gênio, de tal escolhido de Deus. Talvez só a morte sacie a todos, venturosos ou não.
Logo que desembarquei por aqui, acostumei-me a tomar quase todas as tardes umas doses de vodca num pequeno bar na rua Arbat, lugar completamente aquecido e, meus amigos, depois de enfrentar um inverno de quase quarenta graus negativos, eu entrava lá tendo a sensação acolhedora de estar voltando para o ventre de minha mãe. Sentava-me num alto e fofo sofá azul de veludo, onde, depois de alguns minutos, ficava completamente imerso pelas almofadas de modo que meus pés não mais tocavam o chão. Lá podia ler o Mail, beber e examinar as mulheres moscovitas.
Certa vez, durante o verão, estava acertando algumas dívidas com Svetlana, uma prostituta que quebrava nozes com a vagina, quando um rapaz magricelo e desajeitado entrou soando os guizos da porta e foi de mesa em mesa oferecendo canções com seu trompete. Na primeira mesa, tocou, ou tentou tocar, algo que parecia um passodoble. Não ganhou nenhum óbulo sequer. Na segunda mesa... Não tocou nada, o homem que estava nela só levantou a mão em sinal para que ele não prosseguisse. Quase desiludido, o rapaz chegou até mim perguntando se podia tocar algo.
"Trompete combina com vodca?" - Perguntei, ao que ele respondeu com um dar de ombros.
"O senhor quer que eu toque alguma música especial para sua esposa?" - Disse com um tom desanimado.
"Vôo do besouro." - Respondi apontando o indicador para ele.
O rapaz engoliu seco.
"Se conseguir, te dou quatrocentos e vinte rublos."
Ele fechou os olhos, concentrou-se e começou a tocar com toda aquela vertiginosidade que a música tem. No começo, tudo correu perfeitamente, não dava nem para ver os dedos dele, dada a velocidade em que tocava. Seguiram-se uma desafinada ou outra, sua testa pingava. Comeu uma nota. Mas, mesmo assim, o rapaz queria parecer compenetrado, queria dar aquele ar de virtuose, persistia em tocar; visivelmente estava se auto-desafiando e era divertido ver o quanto ele sofria, feito um rato de laboratório que, uma vez contaminado por uma droga letal, tenta vencer sua condição de roedor, de ser vivo, para provar que é inatingível à empáfia, à audácia, do cientista sádico ou às leis da natureza. Repetiu uma frase, esqueceu da seguinte e emendou com a cadência final. Seus dedos já quase não mais respondiam a seus impulsos, as notas se ligavam e a melodia começava a perder sua forma original; em seguida, ele inventou uns trinados, umas apogiaturas, improvisou notas, quis transformar o besouro russo do Korsakov no mosquito do Satcho, from Mississipi. Sem saída, em pleno desespero, o garoto começou a improvisar uns passos. Quis coreografar e Svetlana riu escandalosamente. Depois, começou a jogar a cabeça para frente e, ainda de olhos fechados, subiu no balcão. A essas alturas, eu já nem sabia mais o que ele estava tocando e comecei a ficar aflito por ele, segurando com força o braço da beldade russa quando, num estrondo vigoroso, um relâmpago clareou as janelas e estremeceu tudo. Mikhail, o barman, disse: "vai chover". Já estava chovendo e a chuva se intensificava a cada segundo. O magricelo então já estava cuspindo no instrumento, estava enfiando a língua no bocal e gritando através dele. Pulava sob a plataforma de verniz quando, finalmente, alcançou uma nota tão aguda, mas tão aguda, que pensei que todo ele fosse entrar pelo bocal e sair intacto pela campana do trompete. E essa foi a última nota de sua... Rapsódia para um louco, e ela durou uns trinta segundos ou mais, dando a impressão que seus pulmões se estendiam até os pés. A música acabou. O magricelo silenciou. E, nesse momento, todos puderem perceber o estrondoso barulho da chuva contra as vidraças. Era como se a chuva fosse o Bolshoi inteiro o aplaudindo de pé. Ele, ainda de olhos fechados, curvou-se em agradecimento, voltando o trompete para o coração, com um sorriso amplo nos lábios. Logo tornou a abrir as pálpebras, suspirou e sua face tomou os traços aborrecidos de antes. Sem graça, caminhei até ao balcão e depositei a seus pés os quatrocentos e vinte rublos, aos quais ele recusou, afirmando que ter tido a sensação, por um instante, de que o bar todo o aplaudia o alegrara suficientemente.