Novos Começos

Novos começos

Maju Guerra

Ela chegou do aeroporto em pedaços, o último elo de família próxima se desfizera. Nunca imaginara esse dia, nunca se imaginara absolutamente sozinha, fragilmente sozinha, visceralmente sozinha. A sensação era um misto de solidão e de abandono, solidão por abandono doía muito mais. Sentiu o peso dos anos pela primeira vez, quantas primeiras vezes surgiam. Afinal, podia escutar a voz do filho caçula brincando com ela: Guta, você já viveu mais de meio século. Parecia, no entanto, haver pulado dos vinte para os cinquenta, como se o entremeio de anos não houvesse acontecido. Porta da rua trancada, totalmente desolada, perambulava por cada canto da casa. Rodeada de recordações, ouvia risos e gargalhadas, revia os dois filhos pequenos, os brinquedos espalhados pela sala. Lembrava-se do carinho que envolvia a casa, do vão escovar os dentes agora, dos pedidos para dormir na sua cama com medo de assombração, dos abraços para amenizar seu cansaço, da alegria em vê-los chegar de madrugada, apesar da carranca que vestia... Se mergulhassem no fundo dos seus olhos, saberiam que era só máscara de mãe zelosa.

Morava longe do restante da família há anos, por causa do emprego do marido. Sem condições de voltar, acabara aceitando sua existência em outro lugar. Mas nunca reclamou de nada, dona de uma alma cigana e curiosa, vivia bem onde fosse preciso. Da noite para o dia, ficara viúva. Foi um susto brutal, ninguém acredita que a finitude da vida pode estar tão próxima. Pelos filhos, Bernardo e Silvinho, com sete e nove anos respectivamente, arranjou forças pra se reerguer. Seguiu criando os meninos, agora somente os três, ela não admitiria falhar. Trabalho, filhos, casa, sua rotina por longo tempo. Algumas amigas queridas, uns namorinhos ocasionais, porque ninguém é de ferro. Precisava de ouvidos, de aconchego, de braços para desabafar e se fortalecer, de energia para encarar a realidade dura à sua frente. Hoje percebia a ligeireza do tempo, ela não havia prestado atenção antes. Em um piscar de olhos, na casa vivam dois homens incríveis, suas crias. Ao pensar que poderia se permitir descansar, aguardar os casamentos e netos bem juntos dela, o mais velho decidiu se mudar para outro estado. Espantada e chocada, lhe perguntou: por que razão? Bem, não havia porquês, havia apenas o desejo dele. Criara os meninos afirmando jamais se intrometer em suas vidas, aquela história do Kalil Gibran: “Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma... E embora vivam convosco, não vos pertencem...”, repetido como mantra. Não podia, de repente, virar mãe retrógrada, todo o tempo se esforçara para ser descolada... Pois é, por vezes esse negócio de mãe moderna doía, doía de verdade, mas fazer o quê? Manteria as aparências, a cabeça erguida e os olhos enxutos, embora o coração penasse.

Bernardo rapidinho conseguiu emprego por lá, casou-se pouco depois com uma moça do lugar. Ela apenas os visitava dentro do espaço regulamentar de tempo, por mais que a vontade de viajar antes a corroesse por dentro. Passou a se dedicar ao caçula.

Um tempinho depois, pra ela somente um tempinho mesmo que fosse um tempão, Silvinho entrou em casa numa felicidade só. Contou-lhe sobre a incrível oportunidade de emprego surgida em outro estado. Ela quase caiu pra trás com a inacreditável notícia. Em transe, piscou os olhos a repetir: que bom, meu filho, que bom. Impensável não apoiar a alegria dele. Como quem não quer nada, procurou saber quando ele iria. A resposta foi: daqui a dois meses, no máximo. Ela respondeu de novo: que bom, meu filho, que bom. Atordoada, pensava: ai, meu Deus, eu não acredito, é castigo. Conversou mais um tanto, declarou-se cansadíssima, disfarçou e pediu-lhe licença para dormir. Trancada no quarto, chorou um lago salgado de lágrimas até adormecer.

Os dois meses voaram literalmente. Ela o ajudou no possível, inclusive a escolher o apartamento na outra cidade. Chegado o dia, ele se fora orgulhoso da sua conquista. Guta prometeu visitá-lo assim que pudesse. Imagine, assim que pudesse. Não tinha mais nada pra fazer que lhe desse prazer.

Para não ser importunada, deixou mensagem na secretária eletrônica sobre uma viagem sem data certa de retorno, necessitava de descanso. Agora, lá estava ela em casa, arrasada, sem atender ao telefone. Cheia de pena de si mesma, chorava feito uma desesperada, pensava em todas as coisas ruins que conseguia imaginar, sem sair do sofá da sala, sem se alimentar direito, mal tomando banho. Queria firmemente virar árvore, ficava olhando para os pés pra ver se nasciam raízes e nada. Concluiu ter nascido pra ser gente, gente sente dor e ponto final, impossível escapar.

Após uns dez dias de martírio, resolveu se olhar no espelho. Foi um choque, com certeza aquela figura estranha não era ela. Precisava tomar providências urgentes, antes que fosse tarde. Não se tornaria árvore e não queria morrer, constatou. O que faria enfim? Primeiro, um bom banho de banheira com sais aromáticos, bastante espuma pra relaxar. Depois tomaria uma sopa quentinha com biscoitos, dessas prontas mesmo. Foi se deitar ao estilo Scarlett O’Hara, adorava a personagem de “... E o vento levou”. Antes de dormir, pronunciou solenemente uma das suas frases favoritas: "Amanhã será outro dia...”.

No outro dia, acordou tarde, praticamente restabelecida. Deu bom dia para o dia, abriu as janelas para arejar o ambiente, olhou-se no espelho e, coisa boa, se reconheceu. A vida toda fora uma pessoa dramática e intensa, era fato, nunca escondeu de ninguém essa sua faceta. Ao passar por alguma dor profunda, se recolhia, mergulhava nas próprias entranhas. Precisava ir ao fundo do poço, esgotar o sofrimento passo a passo. Quando a terra molhada lhe incomodava, voltava à superfície. Era seu método secreto de cura, cheio de ótimos resultados, por sinal.

Tomou café e se enfeitou toda, vida nova, novo começo. Decidiu procurar um orfanato de animais em busca de um filhote de gato, importantíssimo para preencher o vazio da afetividade. Telefonou para Clarinha, companheira de todas as horas, aquela que sempre a considerou uma mediterrânea passional. Convidou a amiga para auxiliá-la a encontrar o seu gatinho. A amiga começou a rir, comentou que precisava era de um gato homem. Ela rebateu: uma coisa de cada vez, eu chego lá, amiga, pode ter certeza. No caminho conto tudinho pra você. No atual momento, quero que me concentrar no nome do gato filhote, Rodolfo me parece interessante...

Maria Julia Guerra.

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