Morto-vivo

- Eu não suporto ficar aqui feito idiota, deitado, inerte. Esbravejou Quinzinho.

- Como o senhor está se sentindo hoje, senhor Quinzinho? – pergunta uma enfermeira carregando um bolo de lençóis e travesseiros.

Quinzinho olhou-a de baixo a cima e riu sarcasticamente.

- O que você acha? Ironizou.

- Noto o senhor mais corado hoje, revigorado. É possível que alguma lembrança alegre tenha-lhe passado pela cabeça. – Ela abraçada àquele amontoado de roupas de cama, olhou-o demoradamente com aqueles olhos miúdos, sagazes, riu e foi cuidar de seus afazeres que já a aguardavam.

Quinzinho, irrequieto, via aproximar-se seu único e fiel amigo: o sol. Começava a iluminar timidamente por entre as grades e aquecer seus pés. Todo dia o fazia. Exceto nos dias chuvosos, o que deixava Quinzinho irritado.

Toda noite era a mesma prática: impaciência no leito. “Leito de morte” – vociferava. Visitavam-no o sol e a equipe de enfermagem, algum médico, vez ou outra – raramente. Conhecia cada uma das enfermeiras, mas detestava a maioria. Simpatizara com apenas duas: Margareth e Elísia. E os anos iam-se passando e lembranças amontoando em sua memória. A esposa, os filhos, amigos, todos lá fora andando de um lado para o outro, cuidando de suas vidas; ou não.

No outro dia, precisamente às sete da manhã teria visita. Sempre acontecia. “Podia ser Elísia ou mesmo Margareth” – imaginava. Naquele, nenhuma delas. Franziu o cenho, não quis o café.

- Tem que comer senhor Quinzinho! – dizia a enfermeira, ríspida.

- Não tenho fome! Mentia ele, feito criança emburrada.

- Se não comer será alimentado de outra forma. – dizia ela com cara de cansada, saco cheio, sonhando com a aposentadoria.

Quinzinho recobrava logo o humor, erguia-se e tomava o café sem cerimônia. Outrora, em casa, por quantas vezes jogou xícaras ao chão por não gostar do café que Janice – a esposa – preparava-lhe carinhosamente; ali era bem diferente, muito diferente. Fora homem para ser tratado com todo desdém, reconhecia. Além da esposa e filhos tratava a outros com aspereza. Estava só e talvez até mesmo Elísia ou Margareth quisesse apedrejá-lo. Precisava mudar, pensava: ”mas agora, sobre um leito à espera da maldita e tardia morte? Sim, não há época para recompor-se, ajustar os erros e até pedir perdão a alguém. Não, deixa essa de perdão – não consigo, sinto vergonha. Já, já o meu amigo sol vem visitar-me; meus pés estão frios, úmidos e sem cor; parecem mortos. E depois o almoço, depois o café novamente, depois o entardecer – o crepúsculo – e finalmente, o tédio: a noite. Resumi a nada, nada. Morto vivo é o que sou; sinto-me assim”.

Do outro lado, lá fora, Janice, respira aliviada. Ressentida, buscara refazer-se noutras aventuras. Podia se dar ao luxo de ainda ser amada por alguém, como jamais o fora. Quinzinho fora-lhe apenas uma má lembrança, uma árvore sem frutos. Quanta vez Quinzinho ao chegar a casa, olhava-a e mesmo sem ouvi-la, esbofeteava-a. É certo que determinados seres nascem mortos, insignificantes e, um destes, fora Quinzinho. Depois de condenado ela não o visitou. Não sentiu nenhuma vontade.

Os filhos, atordoados, preferiram esquecê-lo – o pai. Sentiam-se de proveta ou coisa parecida. Houve em casa um monstro, não um homem – diziam sem remorso, dando rumo às suas vidas.

No corredor, uma enfermeira empurra um carrinho. Hora do jantar. Quinzinho fixa o olhar para decifrar a enfermeira. Era Elísia, cara fechada, queixo próximo ao peito, olhos espertos. Sem palavra estende-lhe o prato.

- Tudo bem com você, Elísia? – Ele dispara, mostrando-lhe um monte de dentes, apodrecidos.

- Tudo e o senhor? – Ela abrevia.

- Senti saudades. Onde esteve? – Ele indaga com o garfo enterrado no arroz.

- Estive em férias, senhor! – Ela esclarece, virando-lhe as costas para se retirar.

Ela atravessa a porta e o agente que a aguardava tranca o cadeado, ecoando por todo o corredor.

- Se eu pudesse escolher, não atenderia a esse homem. Não passaria sequer na porta de sua cela. É um porco; imundo. – Desabafara Elísia com o agente que apenas a olhava e meneava a cabeça.

Numa tarde ensolarada, a família é chamada às pressas. Os filhos ignoraram ao chamamento. Janice, mulher firme nos propósitos, não dominou com a mesma perspicácia o coração: atendeu ao chamado.

Chega ao presídio. É conduzida pelo agente à cela hospitalar, na qual padece sobre o leito, Quinzinho, desde a sua condenação.

- Janice! – Balbucia Quinzinho com voz de morte, esparramado no leito – um verme.

- Olá! – Responde Janice forçando cortesia.

- Que bom que você compadeceu-se e veio me ver. Tenho muito a lhe dizer, não sei se darei conta. – Preste bastante atenção Janice – entonou a voz com grande dificuldade –, eu não soube cativar você, tampouco aos meus filhos. Mesmo envergonhado, peço a você desculpas por tudo, tudo. Extensível aos meus filhos – transmita-lhes isso.

Janice encarou-o por longos minutos, preparou-se e disse-lhe:

- Perdoo-lhe...

Virou-se, fez sinal para o agente, atravessou a porta e ganhou a rua para a liberdade...