UM CERTO SUICÍDIO

O Dr. João Batista, antes de sentar-se à mesa para o desjejum, foi até a sala e apanhou a folha digital e ligou-a para ler as notícias. Fazia isso todos os dias desde a época em que o jornal ainda era impresso em papel. Mas há cinco anos não se usa mais papel comum, devido às sérias restrições à extração de madeira; e agora só se usa o papel digital, onde uma folha com quase a mesma espessura e largura que a antiga folha de jornal mostra, como na tela de um computador, as páginas do jornal. Ele, no entanto, ainda preferia as antigas folhas de papel e achava mais prático folheá-las do que ficar clicando no botão de navegação ou sobre o título da matéria.

Ele sentou-se à mesa e então seus olhos correram através da primeira página. Eram quase sempre as mesmas notícias dos últimos tempos: tragédias na África, crise no Oriente Médio, exportações chinesas batendo mais um recorde, valorização do euro – moeda usada no comércio mundial depois da queda do dólar – frente às principais moedas do mundo; e no campo político, mais um caso de corrupção envolvendo membros do parlamento Sul-americano e conglomerados multinacionais. Aliás, desde a década de 20, quando o parlamento Sul-americano passou a funcionar em São Paulo que vários casos de corrupção foram registrados.

Mas não foram essas notícias que chamaram a atenção do Dr. João Batista. No canto inferior direito da página, grafado em grandes letras pretas, noticiava-se o suicídio de mais uma jovem de 18 anos, filha do presidente das ISES (Indústrias de Semicondutores do Estado de São Paulo).

A primeira página não trazia detalhes; assim ele apontou o dedo sobre o título da notícia e a página seis apareceu no visor. E então ele pode não só ver a foto da jovem suicida como toda a sua história.

Não era uma história tão diferente da de tantas outras que apareciam diariamente no noticiário. Quase sempre os jovens se matavam e não deixavam nenhuma explicação dos motivos que os levara a cometer um ato de desespero como aquele. E no caso daquela jovem tão bonita, cheia de vida, onde nada lhe faltava também não havia uma única palavra. Simplesmente a jovem saltou do apartamento em que morava no 20° andar de um dos prédios mais luxuosos da capital.

-- Que coisa triste! -- exclamou o Dr. João Batista para a esposa. -- Mais um jovem se matou.

-- É. Não sei aonde isso vai parar! -- concordou a esposa, após tomar a xícara de café solúvel. -- Já virou rotina. Todos os dias ocorrem casos assim – acrescentou com indiferença.

Fábia Santos Batista era uma senhora de 45 anos, alta, de traços delicados, cabelos longos. Era dotada de uma inteligência fora do comum. Trabalhava como diretora do colégio Souza Aguiar, uma das instituições de ensino mais respeitadas na capital Paulista.

-- E o pior que a população de jovens é cada vez menor. Fico pensando nos pais desses jovens. Deve ser uma dor terrível. Até porque é preciso muita coragem para se ter um filho hoje em dia. A maioria das mulheres não querem mais ter filhos, nem com os incentivos do governo, e quando os têm, os filhos acabam se matando – comentou o esposo, um dos médicos responsáveis pelo departamento de oncologia do Hospital das Clínicas. Área essa de destaque na medicina do século vinte e dois, depois que o câncer passou a ocupar o primeiro lugar dentre as causas de morte da população mundial, exceto na África, onde outras doenças ainda matam mais que o câncer.

-- Se os governos não derem mais benefícios às mulheres para que tenham filhos, a população do planeta ainda acabará extinta. Veja na Europa: em alguns países, como por exemplo a Suécia: o número de habitantes hoje é a metade da que tinham no ano 2000. Mesmo países como Brasil e China, que sempre tiveram uma taxa de natalidade elevada, têm hoje uma taxa negativa, embora esteja próxima de zero – disse a esposa, levantando-se, pegando as xícaras utilizadas e atirando-as no recipiente de lixo reciclável. Desde 2029 a reciclagem tornou-se lei, com multas severas para quem não separar seu lixo. E então, toda casa passou a ter quatro compartimentos para depositar o lixo.

-- Ou teremos que importá-los da África e do Oriente Médio, onde a população ainda continua a crescer – acrescentou o esposo com ar de sorriso.

-- Talvez fosse uma medida mais barata, embora a população de negros já atinja a marca de 80% da população. Hoje em dia, exceto na Ásia, quase não se vê pessoas de pele clara. O branco está se tornando uma raça exótica. Se as coisas continuarem com estão, em duzentos anos o homem branco estará praticamente extinto.

-- Será que chegaremos a isso? -- indagou o Dr. João Batista, desviando a atenção da página digital e fitando a esposa.

-- Certamente. Aliás, o branco já é descriminado. Quase não se vê um branco na TV. Só em programas antigos. E quase não se encontra produtos de beleza para peles claras, e não se aceitam mais mulheres brancas como modelos. Essa profissão hoje em dia é exclusividade de pessoas com peles escuras.

-- Você tem razão. Mas trazer mulheres da África para ter filhos não seria um retorno a meados do milênio passado, quando se trazia escravos para a América para trabalhar?

A esposa preparando-se para deixar a cozinha, respondeu:

-- Ah, não! Não é a mesma coisa. Dessa vez elas viriam por vontade própria. Além do mais, com todos esses benefícios oferecidos pelo governo, elas levariam uma vida bem melhor do que levam naquele continente – discordou a esposa, deixando a cozinha e preparando-se para sair para o trabalho.

Embora se tratasse de uma opinião controversa, as palavras da diretora encontravam eco nos mais variados segmentos da sociedade, inclusive em muitos governos. Alguns países europeus, vendo sua população sendo reduzida em taxas cada vez maiores, discutiam abertamente propostas desse tipo como única saída. Pois a redução da população mundial vinha causando grandes estragos nas economias desses países. Não por acaso, países como China, Índia, Brasil, Indonésia e África do Sul tornaram-se, depois da terceira década de 2000, as principais economias do mundo.

O Dr. João Batista levantou-se em seguida e acompanhou a esposa até o quarto com a folha digital na mão. Lá, depositou-a sobre a cama e foi até o banheiro limpar os dentes com o escovador elétrico – era mais uma das invenções modernas para evitar o desperdício de água. Como sempre fazia, sairia junto com a esposa e a deixaria na escola antes de seguir para o seu local de trabalho.

-- Hoje tenho que visitar uma dezena de pacientes. Já não agüento tanto velho na minha frente – disse o Doutor para a esposa ao entrar no carro. -- Você acredita que meu último paciente com menos de trinta anos foi há seis meses?

-- Mas hoje em dia os mais novos não adoecem. Até por que há cada vez menos jovens. Lá na escola mesmo. Temos ao todo quatorze salas de aula, cada uma com média de cinco alunos. Na classe de primeira série há somente três alunos. Dá para acreditar? E isso se repete em quase todas as escolas – A diretora falava com certa indignação, como se achasse isso um grande absurdo. -- Você se lembra de quando éramos crianças? Havia pelo menos uma dezena de alunos em cada sala de aula.

O marido acionou os propulsores do veículo e o fez levar-se cerca de trinta metros do solo. De acordo com as novas regras de trânsito, veículos como o seu, deveriam trafegar entre 25 e 35 metros do solo. Abaixo disso, somente veículos de transporte coletivo e aqueles remanescentes da década passada. Em seguida, contornou o prédio em que moravam e seguiram a rota traçada pelo computador de bordo, o qual guiava automaticamente o veículo para evitar acidentes de trânsito. Desde que se criou na Europa a central de rotas de tráfego praticamente não houve mais acidentes de trânsito.

-- Claro que me lembro. Bons tempos aqueles. Tínhamos com quem brincar. Hoje em dia as crianças são muito solitárias. E mesmo quando estão em grupos, tratam um ao outro com uma frieza incrível – disse o dr. João Batista, com melancolia, como se sentisse falta do passado.

-- E eu não vejo lá na escola? Mas isso era inevitável. Os governos criaram tantas leis para proteger a criança e o adolescente que acabaram transformando-os em seres frios, sem sentimentos, sem desejo pelo sexo oposto. Os jovens de hoje não se sentem mais atraídos uns pelos outros.

-- De certa forma é uma volta ao passado. O sexo virou uma coisa proibida para os jovens, como era nos primeiros mil e oitocentos anos da era cristã. Quando o sexo deixou de ser um tabu, quando se conseguiu a liberdade sexual as leis começaram a restringir essa liberdade – disse o marido. – Aliás, nem sei quando essas leis começaram a surgir.

-- Foi na década de oitenta do século XX. Na época tais leis foram necessárias para, proteger as crianças e os adolescentes dos abusos. Mais tarde, as leis se tornaram mais duras devidos à violência sexual. Em todo o mundo crianças eram vítimas de todo o tipo de abuso sexual, cometidos por homens e mulheres inescrupulosos que as usavam para satisfazer suas perversões. Só que ao invés de criar mecanismos mais eficientes no combate a esse tipo de aberração, preferiu-se criar leis que proibisse o sexo antes dos 16 anos. E essas leis foram usadas de forma indiscriminada, o que levou os jovens a não praticar mais sexo com medo das penalidades impostas pelas leis.

-- Não tenho tanta certeza assim, se foram realmente estas leis a causa da baixa natalidade – disse o marido. – E será que está aí a causa de tanto suicídio?

Embora fosse um médico conceituado, o comportamento humano não era sua especialidade. Por se tratar de uma pessoa que lida a todo instante com crianças e adolescentes, a esposa era uma pessoa mais informada, mais por dentro do assunto. Por isso o marido muitas vezes gostava de ouvir a opinião dela. E quase sempre ela acabava convencendo-o.

-- O problema foi que o sexo entre jovens da mesma idade foi tratado pela lei da mesma forma que entre um homem de 40 anos e uma menina de quinze ou uma mulher de 40 e um garoto de 13 anos. Bastava que para isso um denunciasse o outro. Assim, criou-se uma barreira entre os próprios jovens. Ao invés de satisfazerem seus impulsos – tão comuns nesse período --, preferiram anulá-lo. E quando se tornam adultos, já não se interessam mais pelo sexo. E aqueles que por um motivo ou outro não conseguem lidar com isso – o que é a maioria --, acabam-se tornando pessoas infelizes, sem motivo algum para viver. São justamente esses que dão cabo de suas vidas, pois não suportam mais viver num mundo tão cheio de regras quanto o nosso. A modernidade pode ter trazido uma infinidade de benefícios. A maioria das doenças tem cura e as pessoas não sofrem mais. Mas em compensação, não podemos ser nós mesmos. Outro dia na escola, eu estava assistindo uma palestra do Dr. Adolph Zeweiter. Ele dizia exatamente isso. E chegou inclusive a dizer que a vida se tornou um lixo para nossos jovens. Por isso eles a jogam fora com tanta facilidade.

-- De certa forma é isso mesmo – conformou-se o marido, como se não tivesse mais nada a ser feito, como se o destino da humanidade fosse inevitável. Aliás, ele também era vítima de seu tempo. Embora fosse capaz de curar a maioria de seus pacientes, sentia-se incapaz de fazer alguma coisa para evitar que jovens continuassem aos montes a se matar.

Ao parar sobre o prédio de três andares onde funcionava o colégio Souza Aguiar, o veiculo foi descendo verticalmente, até pousar suavemente no estacionamento da escola. A esposa se despediu do marido com um “até mais tarde” e se afastou. Aquela forma de se despedir do marido, sem um contato físico, também era conseqüência de seu tempo. A impressão que se tinha era a de se viver em outro planeta, não naquele mundo que há duzentos anos, quando os ataques terroristas aos Estados Unidos – a nação mais poderosa então – e a Internet obrigaram as nações a restringirem pouco a pouco as liberdades individuais. Talvez se tivéssemos previsto isto antes e até mesmo dado ouvidos àqueles que nos alertavam contra a modernidade, não teríamos chegado a esse ponto.

Edmar Guedes Corrêa
Enviado por Edmar Guedes Corrêa em 09/09/2006
Reeditado em 10/09/2006
Código do texto: T236257
Classificação de conteúdo: seguro