UM NATAL DIFERENTE

UM NATAL DIFERENTE

Naquela noite, o Natal havia chegado para a grande maioria das pessoas daquela cidade. Na casa da família Dell’uomo, a alegria imperava; o murmurinho de conversas podia ser ouvido em todos os cômodos, a criançada corria fazendo a maior algazarra, deixando o Sr. Dell’uomo – já de idade avançada – quase louco com tanto barulho.

Os Dell’uomo sempre foram muito unidos; raríssimos foram os finais de semanas nos quais não ficaram juntos. O Natal era, para eles, o momento máximo da fé que traziam no coração. A Missa do Galo era o início de tudo, naquela noite. A ceia não começava sem que todos houvessem participado dela.

Como bom italiano, Giuseppe Dell’uomo – um senhor de oitenta anos de uma vida dedicada à família – conhecia um ditado que fazia questão de sempre repetir: ‘PRIMA IL DOVERE DOPO IL PIACERE’, que significa ‘antes o dever depois o prazer’.

“Seo Peppe” – como era conhecido por todos – sempre fora um homem desprendido das coisas materiais. Não era rico, mas também não era tão pobre que não pudesse repartir aquilo que tinha. O que importava para ele era ver as pessoas felizes, por isso é que as reuniões de família eram sempre festivas.

Não muito longe dali, uma garota de uns treze ou catorze anos de idade, magérrima, de compleição doentia, admirava as casas iluminadas e a alegria das pessoas dentro delas.

“Ah! Como é bom ter uma família” – pensava a menina.

Fernanda Maria Albuquerque de Lima – nome pomposo para uma menina tão pobre – já há muito esquecera o que era ter uma família.

Seus pais morreram quando ainda era bebezinho e, desde então, fora criada por uma tia que, entre outros defeitos, tinha aversão pela sobrinha.

Fernandinha perambulava pelas ruas da cidade de dia e de noite, sem rumo e sem destino certos. Às vezes, voltava para a casa e levava os poucos trocados que conseguia arrecadar nos semáforos.

O Natal já não tinha sentido para ela, ou melhor, nunca tivera. Jamais enviara uma carta ao Papai Noel; nunca ganhara presentes – boneca, jamais possuíra uma de verdade, a não ser aquela feita de espiga de milho que ficava em cima de uma caixa que era a sua cômoda.

Seus pais morreram sem que tivessem tido tempo para fazê-la entender o significado do Natal. Esperar que a tia fizesse isso era pura perda de tempo. Um dia, Fernandinha ouvira alguém falar que o Natal era o dia em que Jesus nascera ... mas, quem era Jesus? ela ficara se perguntando.

Então, era Natal e a única coisa que ela sabia era que naquele dia, as pessoas ficavam mais alegres, mais simpáticas ... até passavam as mãos em seus cabelos tão desgastados pela falta de cuidados.

Saindo de seus devaneios, Fernandinha ficara maravilhada com o colorido das casas daquela rua. Todas as casas estavam enfeitadas com lâmpadas multicores que piscavam como que querendo despertar a atenção das pessoas que por ali passassem. Mas uma única casa a fizera sentir algo que há muito tempo não sentia: paz interior.

Fernanda sentara-se na calçada do outro lado da rua e ficara observando a movimentação das pessoas lá dentro. A alegria que emanava de lá a contagiara tanto que ela nem percebera que estava sendo observada por alguém através da fresta da janela.

Giuseppe Dell’uomo já reunira a família e dera início à Ceia de Natal. Todos, naquela casa, sabiam que não podiam sequer tocar na comida antes que o “nonno” reunisse os filhos, as noras, os genros, os netos, enfim, a família deveria ficar em volta da mesa e esperar que ele fizesse as orações de agradecimento. Ele agradecia a Deus pela vida de todos; por Deus consentir que mais uma vez passassem o Natal juntos. Agradecia o encerramento do ano e o início de um novo ano. Os netos achavam engraçado quando o vovô falava que ali se iniciava um novo ano. Pensando bem, Giuseppe Dell’uomo tinha razão, pois, é no Natal que nós renovamos as esperanças para o novo ano que se aproxima. O Nascimento de Jesus representa para nós cristãos, o início de uma nova vida.

Depois de ter tido essa sintonia com Deus através da oração, Giuseppe quis ver como estava a rua e, ao abrir a cortina da janela, viu do outro lado da rua uma menina sentada que olhava fixamente para a sua casa. De imediato não dera muita importância àquilo – talvez ela estivesse esperando alguém para passear, uma vez que a noite estava agradável, pensara.

Passado algum tempo, Giuseppe retornou à janela e, para sua surpresa, a menina ainda estava lá, no mesmo lugar e com o mesmo olhar fixo para a casa. Ele resolveu ir até lá.

- Oi, você está bem? _ Perguntou ele, sem que a menina se sentisse amedrontada.

- Sim. _Ela respondeu, sem perder o foco da sua visão na casa iluminada.

- Como você se chama?

- Fernanda.

- Mora aqui perto? _Ele queria, aos poucos, ganhar a confiança da menina.

- Não.

- Você está esperando alguém?

A menina, pela primeira vez, desviara a atenção da casa e olhara nos olhos do Sr. Giuseppe e ficara, por alguns instantes, fixa neles e respondera:

- Não... não tenho ninguém por quem esperar.

Essa resposta deixara o Sr. Giuseppe tão comovido que ele demorou um pouco para se restabelecer e formular outra pergunta.

- Você quer entrar comigo na minha casa?

Um pequeno sorriso brotara nos lábios da menina como se ela não acreditasse no que estava ouvindo.

- Quero ... mas... eu ... minhas roupas estão sujas!

- Não se preocupe com isso. Lá eu lhe dou roupas limpas. Então ... vamos?

A menina levantou-se vagarosamente e, com um pouco de dificuldade acompanhara aquele desconhecido.

Giuseppe Dell’uomo percebera uma certa debilidade na menina, mas não dera muita importância, afinal ela era magrinha e, talvez estivesse sem se alimentar por um longo tempo.

Ao entrarem na casa, todos os que lá estavam ficaram pasmados ao ver o “nonno” entrar com aquela menina desconhecida, suja, magra, com um aspecto de causar pena. Mas, como eles conheciam o coração daquele homem, acabaram por aceitar aquela “intrusa” em plena noite de Natal.

Dona Francesca, a mulher do Sr. Giuseppe, junto com as filhas tratou logo de cuidar da menina. Levaram-na para o banheiro, providenciaram um bom banho, deram-lhe roupas novas e cheirosas e, quando a menina já estava devidamente asseada e vestida, desceram para junto dos outros.

Durante o tempo em que estiveram no quarto, a menina não proferiu uma palavra sequer. As mulheres evitaram fazer perguntas para não constrangê-la.

Quando voltaram à sala, o Sr. Giuseppe reunira todos e fizera a apresentação da menina.

- Meus filhos ... esta é a Fernanda. Sei muito pouco da vida dela. Só o que sei é que ela não mora aqui por perto e que, segundo ela, não tem ninguém que a espera. Encontrei-a sentada na calçada, do outro lado da rua, sozinha. Acho que poderíamos escutar o que ela tem a nos dizer, o que vocês acham?

Todos concordaram de imediato, afinal ela era uma desconhecida e estava invadindo a noite de Natal deles.

Fernanda que estivera cabisbaixa, envergonhada por estar ali no meio daquelas pessoas desconhecidas, levantara a cabeça, uma pequenina lágrima tentou escorrer de seus olhos e ela começara a falar.

- Não tenho pais ... eles morreram quando eu tinha um ano de idade. Não me lembro de seus rostos ... não me lembro dos carinhos de minha mãe ... não sei como eles eram.

Fizera-se silêncio na sala. As lágrimas escorriam no rosto dela e seu corpo parecia se convulsionar. Ela recomeçara a sua estória.

- Tenho uma tia que cuida de mim, mas ela não me dá carinho, nem me faz agrados. A gente mora num barraco lá perto da linha do trem ... a gente é pobre ... eu, às vezes, ganho um dinheiro nos semáforos ... mas eu tenho que entregar à minha tia, senão ela me espanca ... ela bebe muito ... disse que eu sou um estorvo na vida dela ... então, prefiro ficar na rua.

A comoção fizera-se presente em todos naquela sala. Em plena noite de Natal, eles estavam diante de alguém a quem pouco importava se aquela noite era especial ou não.

Sr. Giuseppe, vendo que a menina estava muito emocionada, resolveu pôr fim àquela cena e a levara para um lugar na mesa onde eles iriam fazer a ceia de Natal. A menina sentara-se ao seu lado e ele a servira com as comidas que ali estavam para serem degustadas. Ela comera com voracidade, como se a comida fosse acabar num passe de mágica. Todos ficaram perplexos pela maneira com que ela comia.

Para o Sr. Giuseppe pouco importava saber mais da vida daquela menina. O que importava, de fato, é que ela estava ali e que cuidaria dela como se fosse sua filha. Ao mesmo tempo sentia no fundo di coração que algo de extraordinário aconteceria naquela noite. Talvez fosse só um pensamento vago, afinal aquela garota mexera com a sua emoção – ele dizia para si mesmo.

Aos poucos, as pessoas iam se levantando e saindo da mesa, após terem se saciados com uma farta ceia de Natal. Restaram à mesa somente o velho e a garota.

Sr. Giuseppe, vendo que a menina permanecia calada, resolvera iniciar uma conversa. Aproveitara o momento e contara-lhe a história de Jesus: como e onde Ele nascera; o que Ele fizera quando adulto, enfim, contara-lhe tudo sobre Jesus de uma maneira que a menina aos poucos se envolvesse naquela áurea que pairava na sala. Os netos do “vovô Peppe” se encantavam todas as vezes que ele falava de Jesus. Ele as fazia sentarem-se ao chão, perto da sua cadeira preferida e ali, elas e os adultos também, ficavam maravilhados observando o “nonno” falar daquele Homem. Às vezes podia se notar, no cantinho do olho do avô, uma pequenina lágrima querendo escorrer pela face, mas ele, italiano ao extremo, não se permitia chorar na frente dos outros, principalmente dos seus netos.

A vida da família Dell’uomo era pautada nos ensinamentos de Cristo. Os pais de Giuseppe sempre foram comprometidos com as coisas de Deus. A mãe, todas as noites, não deixava ninguém ir dormir antes de rezarem juntos o terço e, para que isso acontecesse, ela pegava-o, colocava-o sobre a mesa e, quem estivesse com mais sono dava inicio a reza. Esse exemplo de amor e comprometimento a Deus, Giuseppe Dell’uomo fez questão de transmitir aos filhos – essa é a maior herança que um pai pode deixar.

As horas passaram tão depressa que Sr. Giuseppe nem percebera que já era madrugada e que seus filhos e netos já estavam se preparando para voltarem para suas casas.

Naquele momento Fernandinha começara a se entristecer, pois sabia que teria que voltar para a rua e encontrar um lugar para passar o resto da noite. Talvez, por sorte ela encontrasse um viaduto por perto ou uma marquise de loja onde pudesse ficar até o amanhecer e, depois voltar à sua rotina. Para ela todos os dias eram iguais e as chances de sobreviver numa cidade onde uma parcela da população vivia como ela, mendigando, pedindo esmolas nos semáforos, brigando por um pedaço de pão ou removendo os lixões em busca de algo que pudesse saciar sua ânsia de sobrevivência estava cada vez mais difícil.

Mas aquela noite foi diferente. Ter encontrado esse senhor com cara de Papai Noel e ter sido acolhida em sua casa sem que antes ele nunca a tivesse visto, foi a única coisa boa acontecida em sua vida. Encabulada e um pouco a contragosto ela teria que ir embora, mas, não poderia sair daquela casa sem antes agradecer e se despedir daquele senhor. Sua tia não lhe dera educação, mas ela sabia como ser gentil com as pessoas, pois isso fazia parte de sua própria natureza, apesar do ambiente em que vivia.

De longe Sr. Giuseppe vira quando aquele corpinho magro, de andar sem jeito vinha em sua direção. Ele sentira em seu coração que deveria fazer alguma coisa, não poderia deixar que essa garota continuasse a viver dessa maneira. Tinha que pensar rápido, pois ele sabia que ela vinha em sua direção para dizer-lhe adeus. Talvez ele pudesse segurá-la em sua casa até o amanhecer e então teria mais tempo para pensar e trocar idéias com os filhos.

Ao se aproximar dele a garota falou:

- Sr. Giuseppe ... eu ... eu estou indo embora. Jamais sonhei com uma noite como esta. Jamais pensei que um dia seria tratada com tanto carinho. Nunca ouvi falar de Jesus, mas sei que Ele mora em seu coração, como o senhor me falou. Adeus, vovô!

Quando ela disse “vovô”, o coração do velho batera com uma intensidade que ele nunca sentira. Sabia que aquela garota era especial para ele; ela lhe proporcionara um Natal diferente. Ele tivera a certeza que a Graça de Deus entrara em sua casa naquela noite. Ele não poderia deixá-la ir embora e disse:

- Filha, quero que fique aqui, hoje. Vou lhe arrumar roupas de dormir e você ficará no quarto de hóspedes. Quando amanhecer, conversaremos um pouco. Agora acompanhe a minha esposa que ela lhe dará tudo do que precisa. Boa noite!

Sem ter palavras para se expressar, pois sentia uma felicidade imensa e um amor muito grande por aquele homem a quem ela acabara de conhecer e que, por instinto, chamara de vovô, seguiu a Sra. Dell’uomo até o andar de cima onde se encontrava o quarto que por algumas horas seria seu.

A mulher deu-lhe uma roupa de dormir e, enquanto a menina se vestia no banheiro, ela preparara a cama.

Quando a menina voltara para o quarto e vira que tudo já estava arrumado não conseguira conter-se e, embora se esforçasse, o choro veio convulsivamente.

Dona Francesca que pensara não ter que se compadecer por mais ninguém, pois os filhos já estavam criados, os netos crescidos também não se conteve, abraçando a pequenina e frágil Fernanda, chorara copiosamente. Ficaram assim, uma abraçada à outra por um longo tempo até que a mulher colocara a menina na cama e saira do quarto com a certeza que aquela cena jamais esqueceriam.

Não demorou muito para sono vir e Fernandinha entregar-se a ele. A cama macia e o travesseiro com cheirinho de limpeza, contribuíram para que ela adormecesse como um anjo no paraíso.

Acostumada a dormir no chão duro, às vezes envolta em jornais, Fernandinha não conseguia dormir uma noite inteira sem que fosse despertada ao menor ruído. E, mesmo estando em uma cama bastante confortável, o seu sono ainda era leve. Foi quando ela sentira que estava sendo observada. Abrindo os olhos viu que alguém estava sentado ao lado de sua cama. Num sobressalto encolhera-se, como que para se proteger daquela visão. Foi quando o homem lhe falou:

- Não tenhas medo, minha filha, não lhe farei mal algum!

Totalmente desperta de seu sono, porém amedrontada, ela perguntou:

- Quem é você? De onde você veio?

Suavemente o homem lhe respondeu:

- Hoje você me conheceu. Através do Sr. Dell’uomo eu fui apresentado à você. Não se lembra?

As palavras suaves proferidas por aquele desconhecido entraram em seus ouvidos e fizera ela se lembrar de tudo aquilo que o Sr. Giuseppe havia lhe falado.

Fernandinha lembrara bem das palavras do nonno; lembrara mais ainda do carinho com o qual ele se referia a um homem que tinha a voz suave, proferia palavras doces. As feições do nonno se transformava quando falava Dele.

Sem entender o que estava acontecendo, ela perguntou-lhe:

- Mas o Sr. Giuseppe disse que a gente só vê você quando morrer ... como você está aqui???!!!

- Estou em todos os lugares, Fernanda – disse o homem. Estive com você em todos os momentos de sua vida. Acompanhei-te por todos os lugares aonde você ia. Estava consigo nos momentos mais difíceis, pois sabia que um dia você encontraria alguém que a acolheria e lhe daria carinho e amor.

O Sr. Dell’uomo ainda não se deitara e escutara uma conversa que vinha de algum lugar do corredor dos quartos. Saira de onde estava e vira que ainda havia luz no quarto de Fernanda e resolvera verificar se ela estava bem. Ele chegara perto do quarto e percebera que a voz vinha dali. Abrira a porta devagar e, tomado por uma enorme emoção, deparara com uma cena extraordinariamente bela: Fernandinha estava envolta numa luz radiante e abraçado a ela estava um homem que Giuseppe com toda a fé que existia dentro dele, tivera a certeza de ser Jesus, o Filho de Deus. Antes que pudesse proferir alguma palavra ou expressar a sua emoção, a luz foi sumindo e desaparecera. Fernandinha, também emocionada, correra ao encontro do nonno e os dois se abraçaram fervorosamente. Sem que conseguissem falar alguma coisa, souberam que a Graça de Deus, manifestada naquela Noite de Natal, unira suas almas e nada mais poderia separá-los.

DONATO

Novembro/ 07

Donato Capuzzi
Enviado por Donato Capuzzi em 05/07/2010
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