A volta
Estava de bruços sobre a cama, ouvindo uma música triste no toca-fitas. Por vezes passava uma tarde inteira regravando fitas, fazendo questão de que houvesse sempre um arsenal de músicas deprês cada vez pior. É claro que estava definhando, isso se via dia após dia. Eu mesmo sentia meus olhos se apagando. Tinha como desculpa o fato de não ter passado naquele vestibular, mas é claro que não era isso, ou pelo menos não só isso. Não seria uma prova de seleção idiota que me impediria de estudar o que quisesse. Apenas não queria estudar coisa nenhuma, não queria fazer mais nada. Tornara-me um fantasma de mim mesmo, rondando a casa e a cidade, sem saber o que querer da vida.
Estava olhando para um ponto fixo na parede amarela, lamentando-me por ser um lixo, quando ele irrompeu pela porta com um barulho assustador. A princípio quase não o reconheci, depois de todo o tempo que havia passado, mas logo senti uma pontada de medo. Lembrei-me de todos os espancamentos da infância, embora eu realmente fosse muito novo na época. Então tive certeza de que não sairia ileso desse inesperado encontro, e me enchi de temor e excitação.
– Tá, e quem te deixou entrar aqui?
– Como assim, moleque? Tu sabe com quem tá falando?
– Sei, com um cara que morou aqui, e que tinha ido embora, ainda bem. Não precisava aparecer de novo. – sorri com desdém.
E um tabefe voou em minha direção, atingindo o lado esquerdo da cabeça. Senti certa tontura, angústia e raiva. A terceira tomou a frente; ele não significava mais nada mesmo. Avancei com tudo, mas logo veio outro golpe bem mais cruel, no outro lado do rosto: ele era canhoto, lembrei num lampejo de memória infeliz. Pensei que algo estivesse escorrendo da minha orelha. Sangue? Lágrimas cortando o caminho? Não havia nada. Ele me contemplou verificando, e apertou os olhos numa expressão de escárnio.
– Nunca pensei que ia ter um filho baitola. Viadinho! Não quer estudar não, sacana? Então pega tuas coisas e te manda! Essa porra aqui é minha, tu só vai voltar quando tiver arrumado trabalho, entendeu?
Saiu sem fechar a porta. O toca-fitas ainda tocava; desliguei-o com um safanão. Minha cabeça ardia, e não tinha vontade nenhuma de rir dessa dor, como antes faria. Sentia toda a vergonha e a humilhação de haver alguém mais forte me mandando para uma situação irreversível. Em outro tempo até pediria para que algo assim ocorresse. Agora, minha mente raciocinava a mil, meu coração batia acelerado: estava vivendo, mas é pena que não pudesse perceber a beleza disso, como antes sonhara. Naquela hora vivia uma espécie diferente de infelicidade. Uma chama estranha me consumia – o ódio. Peguei a mochila; não tinha ideia de para onde deveria ir, mas já estava a caminho.